Mostra de Miguel Rio Branco expõe a atrocidade humana

Uma das obras, Sob as estrelas, as cinzas, está proibida na China. Aos 71 anos, o artista foi censurado pela primeira vez

Mariana Peixoto
Fotos: Cristina Lacerda/divulgação - Foto: Fotos: Cristina Lacerda/divulgação

Rio de Janeiro – Concebida em 1992 para a mostra Arte Amazonas, no Museu de Arte Moderna (MAM-RJ), a videoinstalação Sob as estrelas, as cinzas foi exibida em diferentes espaços. Ela é um dos destaques da individual de Miguel Rio Branco que ocupa todas as galerias do Oi Futuro, no Flamengo. Pois a mesma obra foi censurada pelo governo chinês.

Esta semana, Rio Branco recebeu e-mail do fotógrafo espanhol Alejandro Castellote, curador convidado da Trienal de Guangdong, na China, cancelando a participação da videoinstalação no evento, que tem início em dezembro.

O curta de 14 minutos sobrepõe imagens das estrelas do deserto do Atacama (realizadas pela mulher do artista, a fotógrafa sérvia Isidora Gajic) misturadas a cabeças decepadas, pedaços de corpos (registros antigos do fotógrafo policial Ney Cunha, do extinto tabloide carioca O Povo na Rua) e a fotografias de índios feitas pelo próprio Rio Branco. Tenso, Sob as estrelas, as cinzas exibe uma violência que não tem nada de exibicionista.

Todos os museus chineses são obrigados a submeter suas obras ao Ministério da Cultura. Houve uma negativa há dois meses. O curador fez uma nova tentativa para que a videoinstalação de Miguel fosse liberada, até que veio a resposta definitiva. Com carreira iniciada no início dos anos 1960, o pintor, fotógrafo e diretor de fotografia tem 71 anos.

Nunca havia tido um trabalho censurado.

Sempre inquieto, ele está absolutamente incomodado com o Brasil – filho de diplomata brasileiro, nasceu na Espanha e passou boa parte da infância e adolescência entre a Europa e os Estados Unidos.

A individual reúne trabalhos consagrados – como a instalação audiovisual Diálogos com Amaú (1983), aqui num espaço bem menor do que o da Galeria Miguel Rio Branco, em Inhotim – e outros mais recentes, como a instalação imersiva Wishful thinking (2015). Uma das galerias do Oi Futuro se tornou o labirinto em que rochas, escombros e detritos convivem com plantas e árvores, remetendo a uma situação de ruína invadida pela natureza.

Em entrevista ao EM, Miguel Rio Branco deixa claro que a censura chinesa o incomoda bem menos do que os rumos do Brasil. “Vivemos numa ditadura de bandidos”, afirma.



Como você recebeu a notícia da censura do governo chinês a Sob as estrelas, as cinzas?
Uma ditadura não precisa explicar nada... É um trabalho muito forte sobre a violência nata do homem. Ela pode se desenvolver numa forma mais guerreira, com índios protegendo seu terreno, e pode ser sobre a proteção do terreno do traficante de drogas, com toda a perversidade que isso envolve. E é totalmente atual. O país só vai num estágio de piora: falta de justiça, Judiciário inoperante, política corrompida. Vivemos numa democracia, mas numa ditadura de bandidos.

A exposição no Oi Futuro traz vídeos, instalações, pinturas, objetos... Mas a fotografia é a vertente mais conhecida da sua obra. Você ainda fotografia muito?
Quase não tenho feito foto. A fotografia continua no meu trabalho, mas junto com o audiovisual, que sempre correu em paralelo. Meu trabalho é uma cozinha de vários elementos ligados ao audiovisual. Na criação artística você não tem que ficar preso, o sistema é que tenta te prender.

Tem pessoas que fazem a mesma coisa a vida inteira, mudando o tema, e evoluem muito bem. Tenho uma coisa mais irrequieta. Nunca me senti realmente só fotógrafo. Uma vez, o Gilberto Chateaubriand me apresentou a um grupo de pessoas e disse: ‘Este aqui é o Miguel Rio Branco. Podem chamá-lo até de FDP, mas não o chamem de fotógrafo’. Hoje em dia, você fotografa com isso (mostra o smartphone). Às vezes, a câmera tem até uma qualidade melhor. Mas é tudo descartável, o que é meio emblemático.

Você usa filtros quando fotografa com o celular?
Nunca tive essa questão de mudar de lente, de filtro, essa parte do truque. Quando se aprende cinema, você sabe que tem que acertar o enquadramento primeiro. Isso cria disciplina.
A fotografia com isso aqui (o celular) em geral é ruim.

Como é a vida hoje em Araras (SP), no meio das plantas?
Estou há um período desenvolvendo um projeto que não sei se vai evoluir. É mais ligado à conscientização, ao processo de criação, é quase ensino mesmo. Vem de você sentir que a sociedade não é o que a televisão e o jornal mostram, nem o que os políticos fazem... A China, de certa maneira, é mais democrática, pois os criminosos não ficam no poder lá.

O tempo continua sendo o seu grande tema?
Sim, como o tempo vai comendo, as coisas mudando e se transformando. No cinema e na fotografia, ele está presente o tempo todo.

A instalação Wishful thinking é uma das estrelas da mostra em cartaz no Rio. A expressão inglesa dá conta de um desejo ilusório. Um Brasil melhor seria o seu “wishful thinking”?
Você se força a acreditar que (o Brasil) ainda pode dar certo. O Brasil é o país com o maior potencial de mudança, se ele tivesse um sistema de educação, de profissionalismo, de mostrar que a vida não é você querer enganar o outro. Isso vem muito da TV, do Rio, da Globo mandando para o Brasil inteiro as imagens do malandro carioca. Aqui tem muita coisa que foi sendo destruída. Por outro lado, é um país não teve guerras. Minha esposa é sérvia, era bem moça quando viveu a guerra. Na Europa, 70 anos atrás, havia os nazistas. O Brasil não teve isso tão forte, até pela própria colonização portuguesa. Houve aqui mais miscigenação do que na parte hispânica (da América Latina). As ditaduras deles (países hispânicos) foram piores do que a nossa. Mas, no ano passado, só no Brasil foram 61 mil assassinatos. A gente está caindo. As pessoas têm que começar a ir para a rua e pressionar (contra) essa parte da pouca vergonha.

Um setor da exposição traz objetos seus (câmeras de filmar e fotografar, lentes e peças antigas). E traz também, em destaque, letreiros com ZZZZZZ. Isso é reflexo da acomodação do brasileiro?
Tem um pouco isso, a gente está dormindo no ponto. Em 2013, houve as manifestações, mas elas foram reprimidas violentamente, inclusive pelo (ex-governador Sérgio) Cabral. Hoje, tem as redes sociais, mas não sei se isso vai bastar. Essa mesma parte da exposição traz um filminho com gângsteres reunidos, um trecho de Quanto mais quente melhor (1959), do Billy Wilder. Eles se juntam porque todos querem a mesma coisa.

O que você vê de interessante na arte brasileira de hoje?
Não saberia dizer exatamente, porque não tenho acompanhado tanto. Tenho acompanhado mais a natureza, os acontecimentos políticos. As artes plásticas que vejo hoje em dia não me dizem muito. Ou é muito conceitual, ou acaba tendo uma ‘sacadinha’. Na área da fotografia, houve certo retrocesso na questão documental quando a temática se tornou o principal. Nas artes plásticas também. A temática está sempre presente, mais do que a expressão sobre o tema. Há trabalhos de fotografia que já foram feitos mil vezes antes, mas a pessoa acha que descobriu a pólvora. O pessoal das artes plásticas não olha a história da fotografia, sobretudo no começo do século passado. Então, olho mais para o passado. O tempo, pra mim, é totalmente elástico. O que é importante não é a última coisa que foi feita. Isso é uma visão da publicidade.

* A repórter viajou a convite da Oi


MIGUEL RIO BRANCO
Várias linguagens. Oi Futuro. Rua Dois de Dezembro, 63, Flamengo, Rio de Janeiro, (21) 3131-3060. Em cartaz até 28 de janeiro.

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