Uma longa travessia

Roteirista lança livro com sua adaptação para a TV do romance 'Dois irmãos,' de Milton Hatoum, que demorou 15 anos para sair do papel

Carlos Marcelo

A roteirista Maria Camargo - Foto: Vicente de Mello/Divulgação

Foram necessários mais de 10 anos para que Yaqub, Omar, Zana, Salim, Nael e outros personagens inesquecíveis de Dois irmãos saltassem das páginas do romance de Milton Hatoum para a tela da TV. Um dos pontos altos da dramaturgia audiovisual em 2017, a minissérie exibida em janeiro pela Rede Globo é fruto da obstinação da roteirista Maria Camargo. Nascida em Paris em 1971, radicada no Rio de Janeiro e formada em cinema pela PUC-RJ, Maria leu o livro 27 vezes (!) até chegar à versão final do roteiro, dirigido por Luiz Fernando Carvalho. “Ela conhece o romance por todos os ângulos”, conta Hatoum em texto publicado no livro Dois irmãos – roteiro da série, nas livrarias em edição caprichada da Cobogó. A seguir, uma entrevista com Maria Camargo, que acaba de escrever outra minissérie, Assédio. Livremente inspirada no caso do médico Roger Abdelmassih, Assédio é “uma história de ficção”, sublinha por e-mail a autora em entrevista ao Pensar.

Da primeira leitura de Dois irmãos, em 2002, até a estreia da minissérie, em 2017, foram 15 anos. Você considera o tempo um aliado ou obstáculo à criação do roteiro?

O tempo muitas vezes pareceu ser um obstáculo, e dos grandes, mas afinal se revelou um aliado. Eu certamente era outra quando li o romance pela primeira vez, muito mais imatura – sobretudo como autora.

Nesses 15 anos, tive a chance de olhar a história por muitos ângulos, aprofundar a interlocução com meus parceiros no projeto – como o diretor Luiz Fernando Carvalho –, questionar escolhas que no início pareciam boas e afirmar outras que se tornaram mais claras com o passar dos anos. Além disso, outros trabalhos que realizei, livros que li e filmes a que assisti, além das experiências da vida mesmo, tudo isso foi alimentando a escrita de Dois irmãos. Essas experiências e reflexões compensaram – e muito – os momentos de impaciência e desânimo. E estão impressas no resultado final.

Como foi o processo descrito por você como de “desembaralhar” o que Milton Hatoum havia embaralhado no livro?  O que foi mais complicado nesse exercício?
No livro, tentei justamente iluminar esse processo, bastante trabalhoso, mas também estimulante – porque adoro desafios dramáticos como esse, embora sempre tenha detestado jogos de quebra-cabeça... E esse quebra-cabeça tinha muitas, muitas peças. O romance tem narrativa não linear, essa é a sua natureza – o tempo da memória, que vai e que vem, com uma lógica que não é cronológica. Sempre achei que essa não linearidade era a essência do romance, e que deveria ser mantida. Mas tampouco me iludi – não seria fácil transportar essa não linearidade literária para uma não linearidade audiovisual. A forma de contar do Milton era uma referência muito importante, mas de outra natureza. Para começar, eu tinha que conhecer muito bem a história original. Para isso, além das muitas leituras, a desmembrei em 565 fichas (uma para cada “cena” narrada) para assim entender a lógica das passagens de tempo do romance. Depois, arrumei essas fichas em ordem cronológica, para entender o esqueleto da história em si. Assinalei, então, os principais acontecimentos, os marcos dramáticos, e usei-os como balizas para construir uma nova estrutura – também não linear, mas já com lógica, ritmo e arco dramático audiovisuais.
Para isso foram necessárias fusões, desdobramentos e aprofundamentos, elipses e cortes, e mais centenas de fichas (agora já com embriões de cenas audiovisuais) – que se espalharam pelas paredes e me acompanharam ao longo de muito tempo. Assim, embaralhei de novo o tempo que tinha desembaralhado antes.

Qual o “parentesco” entre o seu roteiro e o livro de Hatoum? Podemos considerá-los também irmãos?
Uma obra audiovisual, seja ela adaptada ou não de uma obra literária, tem que ser inventada. Isso quer dizer começar do começo, sempre. Parece redundância, e é mesmo. No processo de recriação que leva da literatura ao audiovisual, a gente vai percebendo que tem que ser fiel ao universo que está criando. Um universo que é, sim, parente do universo que está na história original, mas que tem suas próprias regras, sua forma particular de estar no mundo. O próprio Milton disse uma coisa muita bonita – que a história dele foi dar um passeio por outra linguagem. E que ainda que essas duas linguagens sejam muito diferentes, há um diálogo possível entre elas, como duas pessoas que podem se entender pelo olhar ainda que falem idiomas diferentes. Eu não diria nada mais bonito e preciso.

“É possível reinventar sem trair? Trair sem corromper?” As perguntas estão no seu texto de abertura da edição comentada e ilustrada do roteiro. Você já conseguiu chegar às respostas?
A gente às vezes acha umas respostas, mas muitas vezes as perde de novo...
(risos). Nesse caso, acho possível. Porque para adaptar uma obra literária, disse sabiamente o roteirista Walter George Durst, é preciso trair por amor. Isso significa ser fiel ao que é essencial na obra literária, mas não necessariamente à estrutura, às palavras, às ações e fatos narrados no original. O grande desafio é encontrar o essencial, o coração da história, é ouvir o que está por trás das palavras.

Como foi o convívio com Milton Hatoum ao longo desses 15 anos?
O convívio com o Milton foi o que de melhor eu poderia ganhar em todo esse processo. Trocamos muitas ideias sobre o roteiro, mas ele sempre foi absolutamente generoso e compreensivo em relação à natureza do meu trabalho e a todas as mudanças em relação ao original. A generosidade dele, como autor e também como o amigo que eu tive a sorte de ganhar, é ímpar.

Como foram as discussões sobre o roteiro com o diretor Luiz Fernando Carvalho? Houve muitas mudanças a partir das observações dele ou o que está na imagem é o que você escreveu?

Durante a escrita, eu e Luiz estávamos juntos e alinhados. Conversamos muitas vezes, mas para ajustar detalhes, nada estrutural. Entre o texto final e a série editada, porém, há algumas diferenças estruturais, sobretudo nos primeiros capítulos.

Como a edição comentada do roteiro da série pode iluminar a compreensão da obra audiovisual?
Há poucos roteiros publicados no Brasil, e para quem tem curiosidade ou estuda processos de construção audiovisual isso faz uma falta enorme. A edição comentada pretende aprofundar esse papel didático, expondo mais clara e profundamente os bastidores, as vísceras do trabalho. Claro que essa é a minha forma de trabalhar, cada autor tem ou vai descobrir a sua, mas há certamente muitos pontos de conexão entre elas. Além da função didática, a intenção do livro é também afirmar a autoria do roteirista – algo que temos que afirmar todos os dias.

“Um roteiro audiovisual é muito mais do que um ponto de partida”, você defende na apresentação do seu livro. “Ele é a estrutura, ossos e músculos da história, já contém em si o ponto de chegada”. O trabalho dos roteiristas no Brasil tem sido respeitado dessa maneira ou ainda precisamos evoluir neste aspecto?
Acho que já estivemos em situação bem pior – há hoje uma compreensão maior da importância do roteiro, a começar pelos profissionais da área. O mercado se ampliou e creio que esse entendimento também. Ainda assim estamos longe do ideal. Mesmo entre nossos pares ainda há incompreensão e desinformação – até entre parceiros muito próximos, como produtores e diretores, mesmo entre jornalistas especializados. Muitas matérias sobre filmes e séries de televisão mencionam apenas o diretor e o produtor, mas não o autor do roteiro, o que é um absurdo. São restos de um descaso histórico pelo trabalho do roteirista.

Você trabalha em série sobre a história do médico Roger Abdelmassih. Qual a diferença entre ter como matéria-prima uma obra literária e a realidade?
Assédio é livremente inspirada na história narrada no livro de Vicente Vilardaga (A clínica: a farsa e os crimes de Roger Abdelmassih, Editora Record), mas é uma história de ficção. Então, há, sim, muitos pontos em comum com o processo de adaptação de uma obra literária. A começar pela obrigação de conhecer profundamente o original, buscando o que há de essencial na história, e depois a necessidade de se afastar dela durante o processo. Mas há diferenças conceituais entre os dois processos e, por extensão, diferenças também no andamento do trabalho. Depende muito, sobretudo, do quanto a dramaturgia se mantém próxima da história real. Quando faço um filme sobre uma personagem real mantendo seu nome ou, ao contrário, renomeando-a e sendo mais radical na invenção dele, a história toma rumos diferentes. No caso de Abdelmassih, o que me interessa sobretudo é a carga simbólica da história, o que ela nos mostra sobre a sociedade e o tempo em que vivemos, e o que pode haver nela de potencialmente transformador quando levada para as telas. Por isso a ideia é, até para ampliar seu alcance, ser mais livre em relação aos fatos – ainda que sem jamais perder de vista a realidade.

Quando você lê um romance, cogita, mesmo inadvertidamente, uma adaptação? A noite da espera, o novo livro de Hatoum, está na sua lista de próximas leituras?
Mesmo antes de imaginar que existiam filmes, ou filmes baseados em livros, eu sempre fui leitora. Continua sendo assim, há em mim uma leitora acima de tudo. Mas é claro que essa leitora muitas vezes (e cada vez mais, preciso admitir) cede espaço para a roteirista, que adora encontrar imagens nas entrelinhas de um texto literário. A noite da espera está na lista de próximas leituras de ambas – e no topo da lista.

 

- Foto:  

• DOIS IRMÃOS – ROTEIRO DA SÉRIE
De Maria Camargo
Cobogó
368 páginas
R$ 62

.