O eterno romance de formação

Milton Hatoum lança 'A noite da espera', parte da trilogia 'O lugar mais sombrio', em que narra a história de uma geração durante a ditadura militar, volta a falar da imigração ao incorporar vivências pessoais

Renan Damasceno

O escritor manauara Milton Hatoum - Foto: Fabio Setimio/Divulgação

Primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio, A noite da espera, novo romance do manauara Milton Hatoum, chega às livrarias na semana que vem em momento que só mesmo a ficção parece capaz de jogar luzes sobre a realidade. Em um Brasil de debate político acalorado, desilusões e certa tendência ao autoritarismo – estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que, em uma escada de 0 a 10, o brasileiro atinge o elevado índice 8,1 de endosso a ideias totalitárias –, Hatoum recorre às memórias pessoais da curta vivência em Brasília, no fim dos anos 1960, para dar à luz um drama familiar cujo pano de fundo é a repressão da ditadura militar.

Para os leitores do vencedor de três prêmios Jabuti, A noite da espera é um poderoso romance de formação baseado em rupturas familiares (como Dois irmãos, de 2000, levado à TV em janeiro, em minissérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho, e que inspirou o especial “Dois destinos”, do Estado de Minas), e fundo político (a exemplo de Cinzas do Norte, 2006). Mas, desta vez, Hatoum se desloca do Norte para o Sul e Centro-Oeste – como em sua própria biografia.

O primeiro volume gira em torno das experiências culturais e amorosas de Martim, que se muda de São Paulo para Brasília com o pai, recém-separado da mãe
. Em primeira pessoa, a história é contada em tempos diferentes: o vivido, na Brasília de 1968, ano de repressão, protestos e prisões de estudantes; e o revisto, na Paris de 1978, quando o paulista revisita sua própria história em rascunhos e memórias datilografadas.

Os outros dois volumes têm previsão de lançamento para o segundo semestre de 2018 e 2019. Em entrevista ao Pensar, por telefone, Hatoum falou sobre o processo de escrita do novo romance e de como a Brasília de Martim, de 1968, reflete as inseguranças e desilusões do atual momento político brasileiro. Como ele diz, “a invenção do passado só faz sentido quando o fato ecoa no presente.”

A noite da espera chega nove anos depois de Órfãos do Eldorado. Quando a história deste romance começou a nascer?
A origem mesmo data de 1980, quando morava na Espanha. Eu queria narrar minha experiência recente, da década anterior, aí escrevi um texto, 200 páginas, que não resultou em nada. Lembro-me de que um amigo argentino leu, em Madri, e disse que aquilo era apenas uma crônica, circunstancial, faltava ficção.

Eu ainda estava tateando. Aí, percebi que ficção, sem essa distância temporal, ela não adquire espessura. Joguei fora os manuscritos. Vinte anos depois, quando terminei Dois irmãos, escrevi um romance, com esse pano de fundo político, que foi o Cinzas do Norte, meu primeiro ensaio sério, mais centrado na história do artista, de uma amizade, de uma perspectiva do Norte, do Amazonas.

E quando voltou a essa história?
No final de 2007, quando terminei Orfãos do Eldorado, comecei a escrever. Ainda não eram três romances, porque comecei pelo que será o terceiro. E numa leitura dos manuscritos, meu editor, Luiz Schwarcz, percebeu que ali poderia ter uma história maior do personagem Martim, que aparece neste terceiro volume. Em 2012, de lá pra cá escrevi esses dois primeiros volumes, mas só terminei o primeiro.

É uma estrutura diferente dos seus romances anteriores…
Foi um romance mais trabalhoso, pois o assunto é muito vasto. Comecei mesmo a escrever quando encontrei a forma, a estrutura da narrativa. Tem basicamente três textos: o tempo de Paris, que ele está datilografando e revisando as anotações; outro tempo, de Brasília; e o terceiro, das reminiscências, da memória do Martim, dos avós. Para montar o romance, tive que encontrar esta forma de anotações, marcações temporais, os saltos temporais.

Como sua sua biografia influenciou na construção das personagens?
Se a memória não for enganosa, ela é fiel até certo ponto. No fundo, quando os traços biográficos entram na ficção, eles não fazem mais parte da vida, fazem parte da ficção. O desafio é transformar esses lances da vida em estrutura ficcional e a vida se dilui, ela está no romance, mas de modo inventado. Claro, tive a preocupação de não ser esse Martim, ele foi uma construção.
Não sou paulista, todos os passos dele foram construídos. O nortista tem alguma coisa de mim, dos meus amigos de Manaus.

É uma Brasília fiel ao que você viveu?
A atmosfera, o ambiente político, a fisionomia da cidade, tudo isso é mais ou menos fiel à época. Claro que há muitas imprecisões, mas como diz o Borges, a imprecisão é tolerável e verossímil na literatura, porque a realidade é a imprecisa. Essa busca pela exatidão, hiper-realista do fato, eu não tive muita preocupação, em ser totalmente fiel. Mesmo porque, a própria literatura realista não é totalmente fiel. Em Stendhal, às vezes, há anacronismos, coisas extemporâneas. Passei 30 anos sem voltar a Brasília, morei lá dois anos e pouco. Em 2002, voltei para escrever um texto sobre as comemorações dos 40 anos. E desde 1971 eu não voltava. Meu colégio foi fechado, o Centro Integrado, que está no livro e existiu.
Então, essas marcações políticas estão fiéis. Mas a verdade da história não é a verdade da literatura.

Mais uma vez, você recorre a dramas familiares, separações, a questão da migração em um romance. Qual a relação deste livro com os anteriores?

É diferente porque saí do meu lugar de origem. Saí de Manaus, do interior do Amazonas. Vim para o Sul, é uma espécie de Cinzas do Norte do Centro-Sul. Explorar outros espaços, outras cidades, mas que têm a ver com minha vida. Disso não consigo fugir. Em Dois irmãos também há elementos fortes do romance de formação, um gênero universal que sempre me influenciou. Talvez minha vida tenha sido um pouco o romance de formação: minha saída precoce de Manaus, deixar a família, de querer ter uma vida livre da província. Foi uma ruptura também e toda ruptura tem um trauma, repercute na sua vida de forma traumática, negativo e positivo. O drama familiar é um dos temas do romance. Vamos dizer que neste quis falar da formação de um grupo, uma pequena parte da minha geração.

Que foi uma geração marcada pela política...

No ambiente em que vivi e estudei, a política estava no centro. Mas não é um romance político, pois na trama não há o grande jogo da política, dos militares. Isso os jornalistas, historiadores estão fazendo. E tenho um pouco de medo do romance político. Você pode facilmente resvalar para o ideológico. Mas, para falar do destino desses vários personagens, foi impossível não tratar a política, pois isso estava muito claro nas nossas relações.

A noite da espera chega em um momento urgente, de tendência ao autoritarismo e que a política volta a pautar as relações sociais. O que um romance pode nos revelar?
Foi involuntário. Em 2008, estávamos caminhando para o paraíso. A ficção se encontra com o presente. Por isso, o passado, essa invenção do passado, só faz sentido quando o fato ecoa no presente. Eu fiquei um pouco assustado com essa infeliz coincidência. O romance de modo geral, no fundo, tem esse poder de iluminar, de revelar certas coisas. Para um jovem hoje ler esse livro, se estiver antenado, ele vai traçar paralelos com o presente. Não estou dizendo que estamos vivendo em estado de exceção, mas há indícios, sinais de repressão, de autoritarismo, e uma enorme brutalidade na periferia, violência assustadora. Acho que houve uma rápida degradação – da sociedade e da política.

Embora esteja ocupado neste e nos dois próximos livros da trilogia, o que você tem lido?

Li há poucos meses o livro de Joca Terron Noite dentro da noite, que apreciei muito. Li A resistência, de Julián Fuks, gostei bastante. O livro de contos, de Marcílio França Castro (Histórias naturais), que é muito bom. Não li mais porque não tive tempo, mas são livros que a gente precisa falar, pois os leitores podem se interessar.

Qual seu ritmo de escrita?
Sou muito lento para escrever, minha lentidão é uma desgraça. Estou com dois volumes para revisar e reescrever. Reescrevo muito. A escrita desses três volumes já dura 10 anos. Relato de um certo Oriente e Órfãos do Eldorado foram manuscritos que não mexi em praticamente nada. E esse, como te disse, tive que fazer um recorte, trabalhar com a subjetividade do narrador, tentar um equilíbrio entre fator interno e externo, entre subjetividade e ação. Foi muito trabalhoso, mas as conversas com os editores sempre foram ótimas. A rigor, a escrita e reescrita não acabariam nunca. Também, depois de alguns livros, como Grande sertão: veredas, a gente tem que começar a escrever derrotados (risos). A gente entra em uma batalha perdida, porque só um louco pode escrever um romance maior. Talvez daqui a 100 anos, pois acho que esse gênio ainda não está entre nós. Nós, mais humildes e mortais, tentamos fazer aquilo de modo mais honesto e verdadeiro, porque a literatura não existe só com os geniais: a literatura francesa não é só Proust. Mas a gente tem que ter isso claro.

 

 

- Foto:  

• A NOITE DA ESPERA – O LUGAR MAIS SOMBRIO (VOL. 1)
De Milton Hatoum
•  Companhia das Letras
216 páginas
R$ 39,90 e R$ 27,90 (e-book)

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