Edição especial resgata a obra do goiano Bernardo Élis

Violência, injustiça e prepotência dos poderosos são marcas da literatura deste autor esquecido pelo Brasil

Severino Francisco
Livro editado pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil foi ilustrado por Elder Rocha Lima - Foto:
Quando José Salles Neto, presidente da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, convidou o artista plástico Elder Rocha Lima (pai) para ilustrar a edição do livro Bernardo Élis Centenário – Contos selecionados, não tinha a menor ideia de que o artista era grande amigo do escritor goiano. A coletânea reúne 10 textos. Elder mora em Brasília desde a criação da cidade, mas se considera “homocerratense” de origem rural, morou em fazendas na infância e conhece muito bem o universo do sertão de Goiás, retratado na ficção do amigo.


Portanto, ilustrar o livro foi algo natural para Elder. “A maior inspiração foram minhas recordações de homem da roça, de homem sertanejo. Meu pai era pequeno fazendeiro. Não precisei fazer nenhuma pesquisa, o próprio texto do Bernardo impulsionou ao desenho das cenas. Acompanhei a produção da obra do Bernardo desde a infância e a adolescência. Discutia muito com ele”, conta o ilustrador.


Bernardo Élis (1915-1997) nasceu em Corumbá de Goiás (GO), cidadezinha perdida no tempo, situada quase no sertão goiano.

Em seguida, mudou-se para Goiás, onde terminou o ginásio. Também era uma cidade sertaneja. Então, ele conhecia de maneira profunda a fala, os hábitos, os costumes e o imaginário do homem interiorano.


“A literatura do Bernardo é violenta”, observa Elder. “Os acontecimentos que ele retrata são muito trágicos. O conto A enxada, uma das obras-primas dele, é extremamente violento. Retrata um estado de Goiás isolado do restante do país. Ali, mandava quem podia. Paradoxalmente, a família dele, embora tradicional, era muito pacífica e se distinguia pelas qualidades intelectuais. Era uma família de escritores e de juristas”.

ALDEIA Elder não sabe se Bernardo Élis gostaria de ser chamado de escritor regionalista. Mas, efetivamente, era, antes de tudo, um ficcionista da aldeia goiana, embora tivesse ambições literárias universalistas. Os personagens, a prosódia, a temática e o ambiente físico são essencialmente goianos.


“O romance O tronco é de uma violência inaudita”, comenta Elder Rocha Lima. “Não havia lei naquele Goiás isolado do restante do país. Imperavam os coronéis e seus jagunços.

Esse mundo acabou, mas ficaram resquícios. No entanto, ao mesmo tempo, a literatura dele transcende o regionalismo. Ele tinha uma fantástica capacidade de observação, memória fotográfica e conhecia a língua erudita e a língua popular. Enquadra-se perfeitamente no que Tósltoi falou: se queres ser universal, fale primeiro da sua aldeia”.


“O escritor goiano é um grande contador de histórias. Todos os contos que escreveu são de alta qualidade”, argumenta José Salles Netto, citando A enxada, André, o louco, Caminhos e descaminhos e Ontem como hoje. No entanto, ele foi completamente esquecido pelas editoras.


“Os livros de Bernardo estão fora de catálogo há muitos anos. A enxada é uma obra-prima, quase uma novela. O conto Ontem como hoje tem narrativa muito moderna e pode ser alinhado com Hemingway ou John Upidike. Veranico de janeiro está na antologia dos 100 melhores contos brasileiros, selecionada por Ítalo Moriconi, e tem traduções para várias línguas”, afirma o presidente da Confraria dos Bibliófilos do Brasil.

IMORTAL Bernardo Élis foi o único goiano a ingressar na Academia Brasileira de Letras: “Ele é Guimarães Rosa sem os neologismos e as invenções verbais. Você pode colocar um conto do Bernardo nas mãos de um menino razoavelmente letrado que ele vai ler, vai gostar.

Lê porque é fácil. Se colocar o Guimarães Rosa, ele desiste porque é difícil. Bernardo Élis escreve para adultos, mas é também um autor pediátrico”, compara Salles.


Élis pode ser considerado um escritor regionalista pelo ambiente e pela temática, mas não pela forma de narrar, como se nota, por exemplo, na obra do paulista Valdomiro Silveira: “Se você não tiver um glossário, simplesmente não entende o que Valdomiro escreve. Isso não ocorre com Bernardo. A linguagem dele não é cifrada; é clara, simples e transparente.”
O universo de Bernardo Élis é regido pela dimensão trágica. O pano de fundo são as relações de opressão dos coronéis do interior de Goiás com os despossuídos. No entanto, o escritor não se detém nos conflitos de classe. “Bernardo Élis raramente conta coisas engraçadas. Se tiver humor, é um humor negro. O universo dele é trágico”, conclui José Salles Neto.

Saiba mais

 

Contista estreia aos 12 anos

 

Bernardo Élis (foto) foi alfabetizado pelo pai, o poeta Érico Curado. Escreveu o primeiro conto quando tinha 12 anos. Nos anos 1930, trabalhou como escrivão de polícia e iniciou a carreira literária. Em Goiás, fundou a revista Oeste e a Associação Brasileira de Escritores. Deu aulas na Escola Técnica de Goiânia, ensinou literatura na Universidade Federal de Goiás e na Universidade Católica. Élis recebeu os prêmios José Lins do Rego, Jabuti e Afonso Arinos, entre outros. Em 1975, ingressou na Academia Brasileira de Letras.

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