Nuno Ramos faz seu primeiro trabalho para a internet, mesclando edição do Jornal Nacional com canção de Tom Jobim

Combinação resulta da vontade do artista de pensar o Brasil a partir do presente e do passado

Pedro Antunes/Estadão Conteúdo Nahima Maciel
Foram necessárias pouquíssimas ferramentas para que Nuno Ramos conseguisse transformar uma edição histórica do Jornal Nacional em seu primeiro trabalho criado para a internet.
No ar no site www.aarea.co, a obra Lígia combina imagens da edição que anunciou o impeachment de Dilma Rousseff e o vazamento dos áudios de Lula e da ex-presidente com a melodia da canção Lígia, de Tom Jobim, gravada nos anos 1970.


Ao se apropriar do programa, Nuno coloca a letra da canção na boca de William Bonner e Renata Vasconcelos graças a recursos simples, mas meticulosos, de edição. Ele identificou as sílabas durante as falas dos apresentadores e afinou com a voz de João Gilberto. “Tudo na edição, sem nenhum recurso técnico”, avisa o artista.

O artista plástico e escritor Nuno Ramos criou obra inusitada - Foto: Eduardo Ortega/Divulgação
O resultado é algo um tanto patético e grotesco, meio robótico e descolado da realidade, combinação que resulta da vontade do artista de pensar o Brasil a partir do presente e do passado. “Vi a Bossa Nova como espécie de outro tempo, aquilo que a gente perdeu. E achei interessante. Não quis fazer protesto nem denúncia nem uma coisa a favor da Dilma. Não era meme de internet”, diz.


O artista garante que não teve a intenção de fazer uma obra partidária, mas admite uma postura política, que consiste em pensar os rumos do país.

Para isso, deu dimensão simbólica à canção da Bossa Nova. O impeachment, para Ramos, foi um momento muito violento da história do país, acompanhado da sensação de anúncio de tempos negros. Já Lígia representa um período no qual era possível olhar para o Brasil com alguma esperança.


“O impeachment é um momento auspicioso, foi uma coisa muito violenta que foi normalizada. Um buraco, um momento de virada para pior. A Bossa Nova foi um momento em que o país estava indagando o futuro. Embora Lígia seja uma canção tardia, ela arrasta ainda o espírito do Tom Jobim, essa coisa para a frente, melancólica, mas, ao mesmo tempo, doce. Acho que alguma coisa virou e o pior do país apareceu”, lamenta Ramos.


Lígia é o primeiro trabalho do artista criado diretamente para a internet. Nuno Ramos não é muito ligado ao universo dos relacionamentos pelas redes. Não tem contas nas redes sociais, mas lida bem com e-mail e sites. Pensar o trabalho como algo possível de ser realizado apenas na rede traz questões novas para ele.


“É curioso, porque você fica muito exposto e há algumas respostas boas; outras, não”, avalia. “O lugar público é um lugar impuro, você não se identifica inteiramente com aquilo que você causa. Imagino que alguém que trabalha com música tenha isso o tempo todo. Para mim, é meio inédito e causa um certo desconforto.”

BANDEIRA BRANCA Se a rede é inédita na trajetória do artista, sua postura política é bem conhecida.

A obra de Ramos costuma carregar reflexões sobre a conjuntura, mesmo que isso não seja explícito nem oferecido imediatamente ao espectador. É o caso de Bandeira branca, instalação concebida para a 29ª Bienal de São Paulo, em 2010. Três urubus eram mantidos em cativeiro na área central do prédio no Parque Ibirapuera, enquanto se ouviam as canções Bandeira branca, Carcará e Boi da cara preta. A obra gerou polêmica, internautas criticaram o uso de animais. Ramos conseguiu provocar a discussão sobre a relação entre arte e política, um dos objetivos da instalação.


No ano passado, o artista abordou novamente essa relação com um ato para protestar contra a anulação do julgamento dos policiais militares que participaram da chacina do Carandiru, em São Paulo, em 1992. Em um apartamento em São Paulo, ele reuniu 24 convidados, entre eles Paulo Miklos, Bárbara Paz, Zé Celso Martinez Correa e Laerte, para ler e transmitir on-line os 111 nomes dos presidiários assassinados. O massacre gerou outra obra, apresentada em galeria há 24 anos: uma instalação na qual cada pedra disposta no chão representa um morto.


“Toda obra tem algum horizonte político, nem que seja o da fuga. Mesmo sem relação direta. Porém, acho que algumas coisas que fiz são mais chamadas pelo agora. Lígia é uma delas.

Mas algumas coisas parecem carregar um sentido mais imediato, como a leitura dos 111 nomes. Lígia é um trabalho que fiz com pouco tempo, com poucos recursos, mas tem uma coisa mais explícita com o momento que estamos vivendo”, diz o artista.


Além de Lígia, Nuno Ramos apresenta na Galeria Anita Schwartz, no Rio de Janeiro, a exposição Grito e paisagem, na qual retorna às pinturas matéricas que o destacaram como um dos talentos do grupo de artistas plásticos da Geração 80. Também escritor, ele acaba de lançar o livro Adeus, cavalo, cuja definição não se encaixa nem em romance nem em contos nem em poesia. Está mais para teatral, com escrita que se inscreve num espaço pontuado por gestos impelidos a um ator, pensamentos soltos e possíveis falas.

 

Quatro perguntas para...

 

Nuno Ramos
artista plástico e escritor

 

Por que juntar a canção e o Jornal Nacional?
Queria um pouco uma melancolia grande que vem dessa fusão de dois tempos. Tem o agora de uma espécie de voz múltipla que a Globo tem, que está em toda parte, cantando uma canção lírica onde alguém vai narrando a cidade: havia um lugar de onde olhar (o país) que a gente perdeu e que a imprensa também perdeu. Acho que a imprensa é parte constitutiva dessa crise, ela precisa aprender a se pensar também. Então fiz isso. É uma espécie de Jornal Nacional alternativo, como se pudéssemos substituir um pelo outro.

É uma crítica, mas é uma ironia também...
A gente não é dono do que faz. É uma crítica, sim. Acho que a imprensa está em questão, não no sentido de alguém dizer a ela qual o lugar dela, mas de ter que lidar com manifestações da sociedade civil que a ponham em questão. Não tenho atração nenhuma por regulação de mídia, acho perigoso, leva a um lugar pior, mas, de toda forma, acho que a imprensa tem que se pensar. E queria contribuir com isso. Você vai ver que tem uma coisa meio cômica, robótica, que vem dessa fusão de dois tempos muito díspares, onde o que parece natural, na verdade, não é.

Como assim?
A gente está vivendo uma situação perigosa. Não há nada em perspectiva. Qual é a voz que está abrindo um veio para nós? Não tem. Isso me parece um negócio duro e queria captar um pouco disso com poucos recursos. Gosto muito daquela frase do Caetano que diz que o Brasil precisa merecer a Bossa Nova. A gente, definitivamente, não mereceu e ainda perdeu um pouco. Acho que a Bossa Nova ainda oferece esse contraste. Especialmente na obra do Tom, que é um disparate de grandeza estética.

Não tem postura partidária, mas tem uma postura política, né?
Não tem uma coisa partidária, mas é difícil não pensar essa obra como obra política, em algum nível. Ela está tentando atuar e, de alguma maneira, é um tijolinho que pensei.

 

 

CONVIDADOS
PARA A REDE

O www.aarea.co foi criado em fevereiro pelas curadoras e pesquisadoras Lívia Benedetti e Marcela Vieira como um espaço dedicado à arte contemporânea brasileira. “A gente sentia falta de algum lugar para mostrar arte sem uma grande estrutura”, explica Lívia. “O trabalho na internet pode ser alcançado por muitas pessoas que talvez não fossem a uma galeria. Esse trabalho do Nuno se alastrou muito.” As curadoras costumam convidar artistas cujo trabalho não tenha necessariamente intimidade com a internet. “A gente gosta de ver as obras deles se desdobrarem para essa mídia”, conta Lívia. Os trabalhos costumam ficar em cartaz por três semanas. Nuno Ramos é o sexto artista convidado do site. A obra Lígia pode ser vista diariamente, a partir das 20h30.

 

 

 

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