Em 'Não está mais aqui quem falou', Noemi Jaffe subverte gêneros

Obra da paulistana também brinca com a semântica para recuperar a potência do texto

Márcia Maria Cruz
"Eu sou judia. Tive uma educação judaica bem forte. Aprendi o hebraico e conheço bastante o Primeiro Testamento. Faz parte da minha formação, do meu repertório desde a infância. São histórias que estão impregnadas na minha vida, histórias muito lindas%u2019" - Noemi Jaffe, escritora - Foto: Joao Bandeira / Divulgação
Noemi Jaffe não é uma escritora de respostas. A pena da paulistana de 55 anos conduz aos deslocamentos próprios das perguntas. Incumbe-se da tarefa anunciada na terceira epígrafe do livro Não está mais aqui quem falou (Cia. Das Letras): “O dever do cavalo é botar o ovo”. Foi um dos nomes da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em mesa com a escritora ruandense Scholastique Mukasonga. Em três epígrafes e 40 textos, a escritora se dedica a transgredir. Em entrevista ao Pensar, revela que não se prende aos gêneros – faz uma literatura transgênero –, brinca que Kafka é queer, diz que está aprendendo com o feminismo, mas não faz literatura militante. Reconhece que o papel da literatura é mínimo diante dos horrores do mundo: a ameaça iminente de um ataque nuclear, o crescimento das desigualdades econômicas e o ressurgimento de movimentos supremacistas.
“É pouco, mas vale a pena. Vale a vida.”

A epígrafe “o dever do cavalo é botar o ovo” aponta para o subversivo ou para o utópico?
Nossa, que pergunta boa. São duas coisas muito semelhantes o utópico e subversivo, principalmente, numa época como esta em que estamos vivendo agora, ser utópico é ser subversivo. A gente está praticamente impedido de sonhar. Estão fazendo de tudo para travar nossa alegria, a nossa potência, a nossa vontade de viver. Então, acreditar ainda em alguma coisa hoje é subversivo.

Você propõe um deslocamento ao falar de “lembranças do futuro”. O que essa possibilidade de brincar com o tempo traz para sua escrita?
Não gosto de escritas lineares, sequenciais, porque o tempo não transcorre dessa maneira. Nele, as coisas são simultâneas, instantâneas, casuais e o que mais importa nele não é a sequência dos minutos, mas a duração. Com esses transtornos temporais procuro, entre outras coisas, dar conta disso que a escrita, por ser sucessiva, não apreende. Mas é claro que é impossível.

A epígrafe “o dever do cavalo é botar o ovo” aponta para o subversivo ou para o utópico?
Nossa, que pergunta boa. São duas coisas muito semelhantes o utópico e subversivo, principalmente, numa época como esta em que estamos vivendo agora, ser utópico é ser subversivo. A gente está praticamente impedido de sonhar. Estão fazendo de tudo para travar nossa alegria, a nossa potência, a nossa vontade de viver.
Então, acreditar ainda em alguma coisa hoje é subversivo.

Você propõe um deslocamento ao falar de “lembranças do futuro”. O que essa possibilidade de brincar com o tempo traz para sua escrita?
Não gosto de escritas lineares, sequenciais, porque o tempo não transcorre dessa maneira. Nele, as coisas são simultâneas, instantâneas, casuais e o que mais importa nele não é a sequência dos minutos, mas a duração.Com esses transtornos temporais procuro, entre outras coisas, dar conta disso que a escrita, por ser sucessiva, não apreende. Mas é claro que é impossível. 

Em Dicionário, você apresenta as definições para palavras como alegria, certeza, destino, ódio, poesia. O que desperta seu interesse por uma palavra? 
São palavras soltas, sem compromisso da sequência de letras do alfabeto normal. Tenho enorme interesse por todas as palavras, pois todas elas têm uma história longa e cheia de mistérios. O problema é que o uso que fazemos delas, cotidianamente, faz com que sua beleza se perca, se banalize. Procuro recuperar um pouco do espanto que elas contêm.

Na crônica Com gás ou sem gás você não traz nenhuma resposta. Muito pelo contrário, traz várias perguntas. São perguntas que são feitas todo o tempo a nós mulheres.
As respostas são a nossa própria existência?

Isso que você está falando tem a ver com a pergunta que você fez antes. O fato de a gente continuar existindo é “utopia” do possível para responder a essas perguntas que não têm respostas. É tipo isso “o dever do cavalo é botar um ovo”. É isso que a gente está fazendo enquanto mulheres vivendo de uma forma impossível.

O feminino está presente na sua escrita, mas não me parece que seja algo que você queira demarcar. Como é lidar com essa tensão na literatura: falar do ponto de vista de escritora, mas sem que isto se torne uma amarra?.
Estou aprendendo muito com o movimento feminista que está surgindo. (O feminino) é uma coisa que aparece, como você disse. Não é um panfleto artificial, uma causa que esteja defendendo, mesmo porque sou contrária à visão de literatura militante, defensora de causas. Isso é decorrência do que escrevo e não premissa. Não é a causa pela qual escrevo, mas acaba aparecendo como resultado. De nenhuma forma isso me prende. Não estou com rabo preso a questões exteriores à própria escrita.

Você tem um texto preciso e transita por diferentes gêneros: a crônica, o miniconto, a história bíblica.
O Joca Terron falou que é um livro transgênero. No texto que escrevi para o Suplemento Pernambuco falo isso. Há muito tempo me cansei desse negócio de divisão, de classificação por gênero. É absurdo. Não dá mais para a gente querer dividir a literatura em gêneros. A mesma coisa que querer dividir o mundo em gênero, agora no sentido de orientação sexual. Dois tipos de gêneros que agora estão morrendo, não é mais nem o gênero literário nem o sexual. Os dois estão caindo de moda.

A ideia de “trans” é muito legal. É passar por todos e não ser necessariamente um ou outro. Pode ser cada hora um. 
A Judith Butler, que é essa teórica feminina, dizia que Kafka era queer.

Na sua interpretação, de que maneira esse conceito cabe a ele?
Na verdade, a Butler diz que o Odradek, personagem do conto Preocupações de um pai de família, é um superqueer. Isso porque é uma figura totalmente híbrida, sem gênero, entre natureza e cultura, vida e morte, algo que, por sua multiplicidade, amedronta todos. Daí a Butler chamá-lo de queer, que exerce esse mesmo lugar na sociedade.

Uma vertente da sua escrita é trabalhar as histórias bíblicas, mas sob outra ótica. Em um de seus textos você reconta o sacrifício que Deus pediu a Abraão. De onde vem esse interesse?
Eu sou judia. Tive uma educação judaica bem forte. Aprendi o hebraico e conheço bastante o Primeiro Testamento. Faz parte da minha formação, do meu repertório desde a infância. São histórias que estão impregnadas na minha vida, histórias muito lindas. Fico pensando muito sobre elas e acho que “o dever do cavalo é botar o ovo”. É subverter essas histórias que a gente ainda reprime, são motivos de opressão, de repressão. Tenho uma revolta muito grande com essa exigência de Deus para Abraão, de pedir que sacrificasse o próprio filho para demonstrar respeito a Ele. Que Deus é esse que precisa desse tipo de prova?

Uma questão um pouquinho fora da literatura. Como você vê o ressurgimento dos supremacistas nos Estados Unidos?
Estou sentindo muito medo das coisas que estão ocorrendo. As manifestações de (Donald) Trump (presidente dos EUA) são muito oblíquas. Ele não se declara contra os supremacistas, critica o outro lado. Está assim no mundo inteiro. Não sei onde vai surgir algo para se contrapor a isso. As pessoas estão tão atônitas, meio impedidas de agir. Fica todo mundo reclamando e ninguém faz nada. Não sei se ninguém faz nada por preguiça. A gente está incapaz. Estamos num estado de gravidade que há muito tempo o mundo não via. Pelo que alguns economistas dizem, pelo tanto de desigualdade econômica que está se criando no mundo, pode ter uma explosão da bolsa pior do que a de 1929. Fora essas coisas todas de Trump e Coreia do Norte. Amanhã pode ter um ataque nuclear.

Nesse cenário, qual é o papel da literatura?

Quase nenhum. Não dá para a gente parar de produzir o que a gente acredita, o que a gente gosta. A criação faz a gente mais potente, mais próximo dessa utopia que você falou no começo. Agora, o que isso é capaz de produzir? Pouca coisa. A desproporção que tem entre a capacidade de ação dos poderosos e a nossa é tão gritante. É pouco, mas vale a pena. Vale a vida.

>> NÃO ESTÁ MAIS AQUI QUEM FALOU
>> De Noemi Jaffe
>> Companhia das Letras
>> 168 páginas
>> R$ 39,90 (livro) 
>> R$ 27,90 (e-book)


SEMPRE UM PAPO
Com Noemi Jaffe e João Anzanello Carrascoza. Quinta-feira, dia 31, às 19h30, no auditório da Cemig (Rua Alvarenga Peixoto, 1.220, Santo Agostinho). Entrada franca..