Livro investiga morte do diplomata mineiro Paulo Dionísio de Vasconcelos durante a ditadura

Há 47 anos a família luta para saber o que ocorreu em Haia

Leonardo Cavalcanti
Mineiro de Iturama e radicado em Brasília, Eumano Silva lança A morte do diplomata, na livraria Quixote - Foto: André Dusek/Divulgação

Durante uma viagem a países europeus, em maio de 1970, o então arcebispo de Olinda e Recife, dom Helder Câmara, conseguiu reunir estudantes, professores e jornalistas estrangeiros, que lotaram salas e auditórios para ouvi-lo. Nos encontros, os casos de tortura no Brasil eram denunciados de forma aberta. Detalhe: não apenas acadêmicos e repórteres estavam interessados nas palavras de dom Helder. As reuniões passaram a ser monitoradas por funcionários brasileiros do Ministério das Relações Exteriores, servidores de alto escalão pagos pelo Estado para vigiar o arcebispo.

Telegrama trocado entre diplomatas em postos avançados no exterior e os burocratas de Brasília apresenta um discurso do religioso na cidade holandesa de Utrecht. “Segundo as autoridades brasileiras, estou cometendo um crime contra o Estado quando falo em torturas no Brasil. Para mim, porém, seria crime contra o povo brasileiro se me calasse”, disse dom Helder, para completar: “Se eu for por isso atirado à prisão, será a melhor propaganda para a causa que defendo”.

Um dos diplomatas destacados para monitorar o arcebispo era o mineiro Paulo Dionísio de Vasconcelos, segundo-secretário da Embaixada do Brasil em Haia, o protagonista do livro A morte do diplomata – Um mistério arquivado pela ditadura, do jornalista mineiro Eumano Silva, que será lançado hoje na livraria Quixote, em BH.

ASSÉDIO


Vasconcelos foi encontrado morto dentro do carro numa rua de Haia, onde morava com a mulher grávida e a filha de 2 anos. O episódio ocorreu em 4 de agosto de 1970, três meses depois das visitas de dom Helder, personagem que ganha força no livro a partir dos diários de Vasconcelos e em conversas com a esposa, Maria Coeli. O diplomata, um dos homens assediados pela estrutura militar para monitorar o religioso durante os encontros na Holanda, sempre deixou claro o incômodo em acompanhar os passos do arcebispo.

“Dom Helder se tornara um dos personagens mais atuantes nas denúncias dos crimes da ditadura, como tortura e morte de adversários políticos.
Paulo Dionísio resistia a colaborar no monitoramento do ‘bispo vermelho’, conforme determinado pela área de informações por meio de canais internos de comunicação”, informa Eumano Silva.

Para além do glamour da carreira diplomática na Europa, Paulo Dionísio era um cidadão comum, com preocupações corriqueiras de um homem de classe média alta no início dos anos 1970. E aqui está a força de A morte do diplomata, pois o texto mostra como a máquina da ditadura tentou – e, em vários momentos, conseguiu – engolir simples burocratas, transformando-os em algozes dos próprios compatriotas no exterior.

DIÁRIO


Vasconcelos deixou um diário minucioso sobre assuntos pessoais e profissionais. Num dos trechos, expõe o incômodo com o adido naval em Paris, Ezio Seize. Meses antes, o comandante havia interrogado uma oficial de chancelaria sobre supostos contatos com subversivos. “O comandante parece meio quadrado, além de ser linha-dura e anti-Juscelino”, escreveu Vasconcelos.

Num dos momentos decisivos, o diplomata foi sondado para participar, como infiltrado, de uma reunião de dom Helder. Seria uma espionagem para a comunidade de informações, o aparato secreto do governo militar. A missão não teria se completado por causa dos riscos: o eventual desmascaramento do diplomata ou até mesmo a associação enviesada com o líder religioso. No diário, Vasconcelos se diz aliviado: “Estou feliz porque não foi preciso cumprir a missão policialesca que me foi atribuída”.

Por mais que o trabalho de funcionários das embaixadas seja participar de eventos de interesse do país de origem, os relatos do diplomata deixam poucas dúvidas sobre o que se queria dele nas reuniões de dom Helder. Com a democratização, ficaram evidentes as ações do serviço secreto do Brasil para evitar – a partir de tentativa de destruição da imagem – que o líder religioso recebesse o Prêmio Nobel da Paz. O que nunca ficou evidente, tenta mostrar o livro, foi a circunstância da morte de Vasconcelos, a mais de nove mil quilômetros de Brasília.

A MORTE DO DIPLOMATA

Um mistério arquivado pela ditadura

. De Eumano Silva
. Tema Editorial
. 205 páginas
.
R$ 35
. Lançamento hoje (12/8), às 11h. Quixote Livraria, Editora e Café, Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi.


O rapaz mineiro

Nascido na cidade mineira de Dionísio, então distrito de São Domingos do Prata, o diplomata Paulo Dionísio (foto) é irmão do ex-deputado Paulino Cícero de Vasconcelos, de 80 anos, que foi ministro das Minas e Energia no governo Itamar Franco. Juntos, os dois cursaram direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na década de 1950. Em BH, o futuro diplomata fez o papel do bispo na peça O auto da Compadecida. Casou-se com Maria Coeli, que conheceu na capital. Ela é filha do deputado federal mineiro Manoel de Almeida, amigo de Juscelino Kubitschek. Exilado, JK foi proibido de voltar ao país para assistir ao casamento dos dois jovens, realizado em setembro de 1967, em Brasília..