Livro 'Todos contra nós' despe a ideia do caráter cordial do brasileiro

Historiador Leandro Karnal analisa o viés narcísico dos debates travados no 'mundo líquido da internet'

Ana Clara Brant

Em tempos de disputa entre %u201Ccoxinhas%u201D e %u201Cpetralhas%u201D, Karnal afirma que já há algum tempo percebia um desequilíbrio no nosso termômetro político - Foto: Facebook/Reprodução

Historiador, escritor, professor de história da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP), Leandro Karnal sempre foi uma figura de prestígio no meio acadêmico.

Hoje, ele se assemelha a uma celebridade, dada sua assídua presença no rádio, em jornal e na TV. O impulso na popularidade veio principalmente de sua coluna diária, Careca de saber, que estreou em outubro de 2016 no canal Bandnews, na qual aborda temas relacionados a religião, filosofia, história, política, ética e comportamento.


O professor vê no fato de ter se tornado “popular” tanto vantagens – como as facilidades profissionais e de difusão de ideias – quanto desvantagens – como abordagens inoportunas, em situações como voos e até banheiros públicos. “Há pessoas que constroem uma personagem e desejam dialogar com ela, por motivos que vão desde o desejo de uma amizade sincera até pedidos de dinheiro. Não consigo responder a todas as pessoas e não conseguiria fixar em uma só. Há momentos de vida familiar ou de solidão que deixam de ser preservados. Mas a maioria absoluta dos contatos é muito boa e com pessoas que chegam para expressar seu afeto, sua vontade de estar junto. Há um ou outro que se esquece que nem sempre posso estar disponível, como qualquer ser humano.
Estou aprendendo sobre o ônus e o bônus disso tudo”, afirma.

Autor de diversos livros, Karnal acaba de lançar um volume que questiona a visão do brasileiro como um cidadão pacífico e cordial. Em Todos contra nós (Editora Leya) o escritor afirma que o ódio é um dos espelhos mais poderosos para olhar nosso próprio rosto e que a maldade é tão próxima do ódio quanto da inveja.

Em tempos de disputa entre “coxinhas” e “petralhas”, Karnal afirma que já há algum tempo percebia um desequilíbrio no nosso termômetro político. Para ele, há pouca avaliação de ideias e pouca escuta. O que predomina é o insulto, a agressão e a classificação. “Não se trata apenas de polarização, como já experimentamos em 1935/37, em 1961/1964 e agora. Existe algo mais grave, que é a blindagem em relação ao outro. Há um furor classificatório e o caráter raso do debate. Acho que está na hora de restaurar não a isenção, que nunca existe ou existiu, mas a capacidade de conversar”, defende.

- Foto: Reprodução/Leya
Foi então que decidiu partir do pressuposto hobbesiano (de Thomas Hobbes, teórico político e filósofo inglês, autor do clássico Leviatã) de que todos contra todos é algo terrível que abre caminho para o colapso da liberdade. “Escrevi para que tenhamos consciência de que o fim do debate é o fim da democracia e que temos pontos em comum a levantar. O Brasil passa dos 200 milhões de habitantes e isso implica diversidade enorme. Não existe um projeto único de nação. Desejei pensar nisso no livro”, diz.

NARCISISMO O historiador acrescenta que o esgotamento de modelos levou a um certo niilismo, uma falta de utopias possíveis, e fez crescer o viés narcísico dos debatedores. “Somos atraídos por nós mesmos e pela sedução permanente do som da nossa voz falada ou escrita.
Elogiamos os outros dizendo que eles ‘nos representam’, ou seja, parecem comigo. O mundo líquido da internet é de narcisos que trabalham com a duplicidade: fechados sobre si e infensos ao mundo e, paralelamente, dependentes de likes e da opinião média. É um jogo dialético curioso: quero e repudio opiniões, faço minha exposição ao mundo e reajo mal a quaisquer interferências na minha soberania”, analisa.

Por falar em internet, Leandro Karnal não acredita que com as redes sociais, blogs e afins o ódio do brasileiro se exacerbou. Para o historiador, isso sempre existiu. Na verdade, Karnal defende que agora muito mais gente virou ou se acha protagonista e passou a não trabalhar com a hipótese de que, provavelmente, o protagonismo que as redes sociais criam é um protagonismo de fótons, de vento eletrônico. “Leve-se em conta a seguinte hipótese de debate: será que estamos dando muitas opiniões a todo instante porque nossa opinião não tem mais relevância? Seria minha opinião rápida em grupos uma prova da minha irrelevância?”, questiona.

Apesar desse cenário aparentemente conturbado, o autor de Todos contra nós acredita que a tendência natural é o cansaço do debate, mas tampouco é livre de certo pessimismo. Na visão do historiador, o fim da verborragia não fará emergir o bom senso e o equilíbrio, mas a apatia e a exaustão da gramática política. “E isso é ótimo para a emersão de sistemas autoritários de esquerda ou de direita. O cansaço da política é perigoso. A maioria dos brasileiros, porém, continua levando sua vida sem nenhuma preocupação com o universo político, mantendo a luta diária pela sobrevivência e sem se contaminar pelo alarido das redes.
Isso também é ruim, pois há pouca percepção de que o preço da gasolina é uma decisão política. Falta a descoberta do sentido da vida na pólis, a política na sua forma original, da gestão do bem público e de que o preço da liberdade é a eterna vigilância. Meu otimismo é sempre um desejo, um farol, uma luz que eu projeto a partir da minha esperança. Meu pessimismo é sempre minha realidade atual da percepção de tudo”, resume.

Todos contra todos
• De Leandro Karnal
• LeYa
• 144 páginas
• R$ 29,90

Diálogos de culturas

Leandro Karnal lançou no começo de agosto mais uma publicação, Diálogos de culturas (Editora Contexto). O volume reúne crônicas publicadas pelo autor desde julho de 2016 no jornal O Estado de S. Paulo, versando sobre suas preocupações mais frequentes: tolerância, autoconhecimento, história e combate ao preconceito. Alguns textos foram adaptados ao formato mais perene do livro e outros atualizados. Diálogos de culturas tem 192 páginas e seu preço médio é de R$ 35.
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