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Exposição reúne peças da escultora Noemisa como crônicas do cotidiano

No princípio era o barro. Terra e água, depois, o fogo. O gesto de misturar esses três elementos, para forjar a cerâmica, está profundamente ligado à representação da vida humana. Nos mais diversos lugares e culturas, esse gesto se repete desde eras primordiais. No Ribeirão da Capivara, em Santo Antônio, distrito de Caraí, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Noemisa segue a mesma alquimia.


Distante do contato com qualquer centro urbano, a ceramista de 70 anos criou uma maneira própria para dar vida à mistura dos três elementos. Suas esculturas retratam seu cotidiano e seu imaginário e expressam beleza e simplicidade através de uma linguagem única.

Uma significativa amostra do trabalho da artista pode ser vista, a partir desta sexta-feira, 04,, no Centro de Arte Popular da Cemig, na exposição Crônicas de Noemisa – 50 anos de cerâmica, que presta merecida homenagem ao trabalho e à dedicação de toda uma vida à arte do barro. Com curadoria de Tadeu Bandeira, a mostra traz 100 obras realizadas ao longo de décadas, evidenciando a diversidade da produção da artista e a poética de seu universo criativo.

O curador vê a obra de Noemisa como um patrimônio ainda reconhecido por poucos e justifica o título da exposição por explicitar uma das principais características da linguagem da artista. ''Ela faz pequenas crônicas do seu dia a dia, registra os costumes da região e o que vivenciou'', explica Bandeira.

A referência ao viés cronístico também está presente em outros textos sobre sua obra.

Lélia Coelho Frota, em seu fundamental Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro (Aeroplano, 2005), afirma que ''Noemisa faz em seu trabalho uma verdadeira crônica da vida do bairro rural que habita''. Maria Aparecida Moura, coordenadora do projeto Saberes Plurais, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que ''a arte de Noemisa traduz, projeta e dignifica o cotidiano do Vale do Jequitinhonha, em crônicas poéticas plenas de vigor e singeleza – um bálsamo entre as vicissitudes de nosso tempo''.

A capacidade de traduzir a própria vivência, singela e isolada, em linguagem autônoma é fato digno de grandes mestres, como fizeram o pernambucano Vitalino Pereira da Silva (1909-1963) e o mineiro Artur Pereira (1920-2003), para citar apenas dois exemplos. Nas obras dos três artistas, a representação do cotidiano é capaz de traduzir o imaginário do povo brasileiro, seus mitos e lendas, as histórias contadas à beira do fogo e uma ancestralidade que remete às tradições indígenas e africanas.

Os três escultores – o primeiro se expressou através da cerâmica e o segundo, da madeira – fazem referência à vida rural, frequentemente representada por animais; a cenas religiosas, geralmente católicas; a fábulas e casos que refletem o imaginário do ambiente que os constituiu. É curioso notar, no entanto, semelhanças formais entre os três autores. Um caso evidente é a representação da caça à onça, em que a tensão narrativa é formalizada a partir dos mesmos elementos: o felino no alto de uma árvore e o caçador apontando-lhe uma arma.

PEÇA SOBERANA Mesmo com traços análogos a outros artistas, a forma simbólica com que Noemisa expressa relações sociais, personagens, ou seja, como ela materializa seu universo, vivido ou imaginado, constitui uma linguagem pessoal e única. Seu vocabulário estético tem características escultóricas particulares. Em depoimento sobre a artista para o Saberes Plurais, a colecionadora Priscila Freire afirma que ''cada peça é soberana, é única, ela não se repete''.

Um dos elementos recorrentes na obra de Noemisa é a relação com o tempo.
Boa parte de seus trabalhos representam cenas: casamentos, batizados, festas com músicos e casais dançando, a prisão de um ladrão de galinha. As situações retratadas pressupõem algum ''antes e depois'', numa espécie de narrativa que transcende a imagem estática da escultura que ''congela'' um instante.

Suas peças trazem outra referência ao tempo, ao inserir relógios de pulso em suas figuras. De tamanho exagerado, está presente em homens e mulheres em situações distintas. A presença recorrente desse objeto sugere curiosa relação da artista com o tempo, sobretudo pelo fato de viver imersa num ambiente rural, em que a temporalidade corre sob uma lógica distinta dos ponteiros que desenha.

Para visitar Noemisa, no Ribeirão da Capivara, é preciso percorrer de carro por cerca de 50 minutos uma estrada de terra (30km), deixar o veículo à beira de um córrego e andar a pé mais 40 minutos até sua casa. Naquela região, não há quem ganhe um salário mínimo por mês. Lá, em meio à aridez do cerrado, fica a morada da artista, construída de pau a pique, com janelas de madeira, telhas de barro e chão de terra batida. As paredes são ornadas por seus desenhos florais, desenhados com a mesma terra que usa em suas esculturas. Nas imediações, há uma pequena lavoura e cinco fornos, também de barro: dois para assar biscoitos e três para queimar as peças, com os quais mantém a tradição local de séculos.

Sabe-se que a avó de Noemisa já lidava com o barro, moldando utensílios – panelas, vasilhas, potes e botijas – para uso doméstico.
No entanto, a Joana, sua mãe, é atribuída a invenção da ''moringa-mulher-de-três-bolas'', em que a tradicional botija de três pés esféricos ganhou formas e uma cabeça feminina como tampa.

Caçula de cinco filhos, Noemisa começou a manipular o barro aos 7 anos. Ela e as irmãs, Jacinta, Geralda e Santa, criavam figuras para brincar. O espírito lúdico – de brincar de casinha e de boneca – foi determinante para a constituição de seu fazer artístico. Em depoimento, afirma que nunca se dedicou aos objetos utilitários. ''Depois de boizinhos e cavalinhos, passei para os cavalos montados, depois fiz noivado, caçador de onça, já fui ideando umas coisas minhas e fazendo.''

 

A prática fez evoluir a linguagem escultórica de Noemisa, que superou as irmãs em criatividade. A relação com o barro, porém, não se alterou muito desde sua infância. Ela e a irmã Santa ainda caminham até a fazenda do senhor Serafim, onde há o melhor barro. Do chão extraem a matéria do trabalho. A tabatinga, o barro branco, e o avermelhado tauá, palavra para argila em tupi-guarani.

O passo seguinte é misturar terra e água, trabalhando e modelando a matéria rudimentar até o ponto de poder lhe dar forma. Noemisa quase não usa ferramentas – um sabugo de milho, um pedaço de cuia, bambu ou metal para aparar sobras da argila; um palito ou uma pena de galinha para refinar detalhes.

Seu principal instrumento são suas mãos.

Diante da peça já moldada, aplica adornos, estampas e flores. Antes de o barro secar, ela pinta suas figuras. O cuidado com ornamentos e minúcias – ''bordar o barro'' – evidencia a delicadeza tipicamente feminina desta arte tradicional do Jequitinhonha. Arte que tem como uma de suas maiores expoentes uma senhora chamada Noemisa.

CRÔNICAS DE NOEMISA – 50 ANOS DE CERÂMICA  
No Centro de Arte Popular – Cemig (Rua Gonçalves Dias, 1608, Lourdes, (31) 3222-3231). Terça, quarta e sexta-feira, das 10h às 19h; quinta-feira, das 12h às 21h; sábado e domingo, das 12h às 19h. Entrada franca. Até 24 de setembro.

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