No princípio era o barro. Terra e água, depois, o fogo. O gesto de misturar esses três elementos, para forjar a cerâmica, está profundamente ligado à representação da vida humana. Nos mais diversos lugares e culturas, esse gesto se repete desde eras primordiais. No Ribeirão da Capivara, em Santo Antônio, distrito de Caraí, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Noemisa segue a mesma alquimia.
Distante do contato com qualquer centro urbano, a ceramista de 70 anos criou uma maneira própria para dar vida à mistura dos três elementos. Suas esculturas retratam seu cotidiano e seu imaginário e expressam beleza e simplicidade através de uma linguagem única.
Uma significativa amostra do trabalho da artista pode ser vista, a partir desta sexta-feira, 04,, no Centro de Arte Popular da Cemig, na exposição Crônicas de Noemisa – 50 anos de cerâmica, que presta merecida homenagem ao trabalho e à dedicação de toda uma vida à arte do barro. Com curadoria de Tadeu Bandeira, a mostra traz 100 obras realizadas ao longo de décadas, evidenciando a diversidade da produção da artista e a poética de seu universo criativo.
O curador vê a obra de Noemisa como um patrimônio ainda reconhecido por poucos e justifica o título da exposição por explicitar uma das principais características da linguagem da artista. ''Ela faz pequenas crônicas do seu dia a dia, registra os costumes da região e o que vivenciou'', explica Bandeira.
A referência ao viés cronístico também está presente em outros textos sobre sua obra.
A capacidade de traduzir a própria vivência, singela e isolada, em linguagem autônoma é fato digno de grandes mestres, como fizeram o pernambucano Vitalino Pereira da Silva (1909-1963) e o mineiro Artur Pereira (1920-2003), para citar apenas dois exemplos. Nas obras dos três artistas, a representação do cotidiano é capaz de traduzir o imaginário do povo brasileiro, seus mitos e lendas, as histórias contadas à beira do fogo e uma ancestralidade que remete às tradições indígenas e africanas.
Os três escultores – o primeiro se expressou através da cerâmica e o segundo, da madeira – fazem referência à vida rural, frequentemente representada por animais; a cenas religiosas, geralmente católicas; a fábulas e casos que refletem o imaginário do ambiente que os constituiu. É curioso notar, no entanto, semelhanças formais entre os três autores. Um caso evidente é a representação da caça à onça, em que a tensão narrativa é formalizada a partir dos mesmos elementos: o felino no alto de uma árvore e o caçador apontando-lhe uma arma.
PEÇA SOBERANA Mesmo com traços análogos a outros artistas, a forma simbólica com que Noemisa expressa relações sociais, personagens, ou seja, como ela materializa seu universo, vivido ou imaginado, constitui uma linguagem pessoal e única. Seu vocabulário estético tem características escultóricas particulares. Em depoimento sobre a artista para o Saberes Plurais, a colecionadora Priscila Freire afirma que ''cada peça é soberana, é única, ela não se repete''.
Um dos elementos recorrentes na obra de Noemisa é a relação com o tempo.
Suas peças trazem outra referência ao tempo, ao inserir relógios de pulso em suas figuras. De tamanho exagerado, está presente em homens e mulheres em situações distintas. A presença recorrente desse objeto sugere curiosa relação da artista com o tempo, sobretudo pelo fato de viver imersa num ambiente rural, em que a temporalidade corre sob uma lógica distinta dos ponteiros que desenha.
Para visitar Noemisa, no Ribeirão da Capivara, é preciso percorrer de carro por cerca de 50 minutos uma estrada de terra (30km), deixar o veículo à beira de um córrego e andar a pé mais 40 minutos até sua casa. Naquela região, não há quem ganhe um salário mínimo por mês. Lá, em meio à aridez do cerrado, fica a morada da artista, construída de pau a pique, com janelas de madeira, telhas de barro e chão de terra batida. As paredes são ornadas por seus desenhos florais, desenhados com a mesma terra que usa em suas esculturas. Nas imediações, há uma pequena lavoura e cinco fornos, também de barro: dois para assar biscoitos e três para queimar as peças, com os quais mantém a tradição local de séculos.
Sabe-se que a avó de Noemisa já lidava com o barro, moldando utensílios – panelas, vasilhas, potes e botijas – para uso doméstico.
Caçula de cinco filhos, Noemisa começou a manipular o barro aos 7 anos. Ela e as irmãs, Jacinta, Geralda e Santa, criavam figuras para brincar. O espírito lúdico – de brincar de casinha e de boneca – foi determinante para a constituição de seu fazer artístico. Em depoimento, afirma que nunca se dedicou aos objetos utilitários. ''Depois de boizinhos e cavalinhos, passei para os cavalos montados, depois fiz noivado, caçador de onça, já fui ideando umas coisas minhas e fazendo.''
A prática fez evoluir a linguagem escultórica de Noemisa, que superou as irmãs em criatividade. A relação com o barro, porém, não se alterou muito desde sua infância. Ela e a irmã Santa ainda caminham até a fazenda do senhor Serafim, onde há o melhor barro. Do chão extraem a matéria do trabalho. A tabatinga, o barro branco, e o avermelhado tauá, palavra para argila em tupi-guarani.
O passo seguinte é misturar terra e água, trabalhando e modelando a matéria rudimentar até o ponto de poder lhe dar forma. Noemisa quase não usa ferramentas – um sabugo de milho, um pedaço de cuia, bambu ou metal para aparar sobras da argila; um palito ou uma pena de galinha para refinar detalhes.
Diante da peça já moldada, aplica adornos, estampas e flores. Antes de o barro secar, ela pinta suas figuras. O cuidado com ornamentos e minúcias – ''bordar o barro'' – evidencia a delicadeza tipicamente feminina desta arte tradicional do Jequitinhonha. Arte que tem como uma de suas maiores expoentes uma senhora chamada Noemisa.
CRÔNICAS DE NOEMISA – 50 ANOS DE CERÂMICA
No Centro de Arte Popular – Cemig (Rua Gonçalves Dias, 1608, Lourdes, (31) 3222-3231). Terça, quarta e sexta-feira, das 10h às 19h; quinta-feira, das 12h às 21h; sábado e domingo, das 12h às 19h. Entrada franca. Até 24 de setembro..