Enviada especial a Paraty
Escritores, organizadores e quem passou pelas ruas de pedra durante a 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) chegaram ao último dia do evento com a percepção de que algo mudou. Não que, antes desta edição, não se pudesse ver na cidade a diversidade do povo brasileiro. A marca da descendência indígena, sobretudo, é inquestionável, seja nos traços dos nativos, seja no artesanato exposto nos espaços públicos ou no próprio nome do Rio Perequê-Açu.
Desta vez, porém, foi diferente na Flip que teve o escritor Lima Barreto como patrono. Ao convidar para as mesas mais escritoras mulheres (23, o mesmo número de homens) e mais autores negros (30%) em relação a outras edições, a festa mudou o perfil de seus frequentadores. A diversidade estava presente nos cabelos crespos orgulhosamente exibidos pelas moças, nos leitores negros que participaram dos eventos, na proliferação de saraus em que jovens declamavam os próprios versos – como ocorreu sábado, no Largo do Rosário, durante Sarau Boto Fé.
A palavra, realmente, era franca a quem quis celebrá-la. ''Num ano tão adverso, chegamos à maturidade da ocupação do espaço público com a cultura. Flip é intervenção e ao mesmo tempo leitura das coisas que estão acontecendo. Desta vez, ficou mais claro a experiência que é a Flip, clareza que está em seu DNA desde o começo, assim como na convivência com os moradores, na diversidade que a gente viu este ano'', pontuou Mauro Munhoz, diretor-geral da Flip, ao apresentar o balanço dos cinco dias de festa.
Boa parte das mesas foi realizada na Igreja Matriz Nossa Senhora dos Remédios.
''Fiquei muito feliz este ano. Voltamos ao começo. Josélia construiu uma programação maravilhosa. Amei a nova forma, tanta diversidade no Centro da cidade'', afirmou a britânica Liz Calder, referindo-se à jornalista Josélia Aguiar, curadora da feira literária. Fundadora da editora londrina Bloomsbury, Calder é idealizadora e presidente da Flip.
DIVA A estrela desta edição não foi uma escritora, mas a professora paranaense Diva Guimarães, de 77 anos. Seu relato emocionou o ator e escritor Lázaro Ramos, a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques e o público durante a mesa A pele que habito, na manhã de sexta-feira, 28. A fala sensível sobre como Diva enfrentou o racismo, por meio da educação, caiu na rede, fazendo dela a celebridade da Flip. Diva foi recebida por Lázaro e pela escritora mineira Conceição Evaristo, tirou fotos com as pessoas na rua e foi ovacionada em vários eventos a que assistiu.
A Flip foi marcada por manifestações políticas, com gritos de ''Fora, Temer'' e ''Fora, Pezão'' destinados ao presidente da República, Michel Temer, e ao governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão. O poeta André Vallias criticou a prisão de Rafael Braga, jovem negro detido nas manifestações de junho de 2013. Na mesa Foras de série, o historiador João José Reis fez considerações acerca do governo brasileiro, do ensino de literatura e da cultura afro-brasileira nas escolas e das cotas sociorraciais. E denunciou a ''escravidão contemporânea''.
APLAUSOS Durante a mesa de encerramento Amadas – ao lado das autoras mineiras Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves –, a curadora Josélia Aguiar foi muito aplaudida por ampliar a participação de autores negros no evento.
''O fato de ter mais mulheres e mais autores negros não deixa de fazer da Flip uma festa literária. É a literatura que está em primeiro plano.
Para Conceição Evaristo, a mudança na curadoria foi fruto da mobilização de homens e mulheres negras. ''Não é uma concessão. É um direito estarmos aqui'', resumiu a autora do romance Becos da memória.
Pela primeira vez, o evento contou com a série Fruto estranho, em que os autores apresentavam versos de maneira performática. A atriz e dramaturga Grace Passô e o poeta e multiartista Ricardo Aleixo, ambos mineiros, conquistaram o público.
A escritora Ana Maria Gonçalves espera que a curadoria mais inclusiva influencie outros eventos. ''Feminismo, racismo e migração foram temas contemplados, tudo isso sem perder o foco na literatura. Que todos se inspirem nesse modelo de festa inclusiva e representativa'', afirmou.
FLIP PRETA Os jovens integrantes do coletivo Nuvem Negra, que vieram à cidade fluminense cobrir a ''Flip preta'', comemoraram a maior representatividade desta edição, mas acreditam que ela pode ser maior.
''É a minha quarta Flip e a diferença ficou bem clara. Há presença maior de pessoas negras, mas ainda é pouco. A fala da dona Diva só ocorreu porque ela encontrou espaço, porque era o Lázaro que estava na mesa'', disse Bruna Souza, de 24 anos, estudante de desenho industrial da PUC Rio.
A estudante de jornalismo Gabriele Roza, de 21, destacou a importância do lançamento do catálogo Intelectuais negras visíveis, organizado pela professora Giovana Xavier, que reuniu mulheres negras de todas as idades na Casa Amado e Saramago.
ECLETISMO A Flip 2017 ofereceu eventos memoráveis. Um deles foi a conversa de Pilar del Río com Paloma Amado, que lançaram o livro Com o mar por meio (Companhia das Letras), reunindo cartas trocadas entre os escritores José Saramago e Jorge Amado. A linguagem e a radicalização de experimentações foram tema da mesa formada pelo cineasta Carlos Nader e a escritora chilena Diamela Eltit. Outro ponto alto foi a mesa O grande romance americano, com os autores premiados Marlon James e Paul Betty.
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