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Entrevista: escritor Antônio Cícero fala sobre dimensão filosófica dos poemas

Ele acredita que a poesia pode oferecer múltiplas perspectivas de compreender a vida. Filósofo, compositor e ensaísta, ele decidiu se dedicar apenas aos versos

Nahima Maciel

Eucanaã Ferraz/divulgação - Foto: Eucanaã Ferraz/divulgação

A filosofia é inevitável e, nos dias de hoje, extremamente necessária. É “metalinguagem terminal”, nas palavras do poeta, compositor e filósofo Antonio Cicero. Tem uma certa coerência e alguma utilidade, já que filosofar pode ser um caminho para melhorar o mundo.


Poesia é outra coisa. Não tem utilidade prática alguma e permite apreender o mundo em uma outra dimensão que não aquela das coisas funcionais. “A poesia é a língua-objeto terminal”, afirma Cicero, que acaba de lançar A poesia e a crítica, coletânea com textos de palestras e ensaios proferidos e escritos nos últimos 11 anos.

Em 2016, Cicero lançou um disco em parceria com Arthur Nogueira. Presente foi uma espécie de celebração dos 70 anos dele, mas também um aviso: a partir de agora, pretende se dedicar apenas à poesia. E essa, no caso do Brasil, está muito ligada à música graças a movimentos como a bossa nova e a Tropicália. Na apresentação de A poesia e a crítica, Cicero conta como se encantou com Caetano Veloso no final dos anos 1960, quando foi morar em Londres para estudar e fugir da ditadura.

Exilado e casado com Dedé Gadelha, prima de Cicero, o músico baiano era capaz de pôr abaixo as barreiras entre o erudito e o popular graças a uma grande liberdade de pensamento, a mesma que fez Tom Jobim e Vinicius de Moraes ignorarem essas fronteiras.

Dessa forma, a poesia e a música sempre andaram juntas, mais agarradas uma à outra no Brasil do que em outros países. “Você vê um músico extraordinário como o Tom Jobim fazendo música popular, um poeta como Vinicius de Moraes, erudito, de repente fazendo canções com Tom Jobim. Depois, veio uma geração incrível de pessoas influenciadas por eles. O próprio Caetano, um grande poeta. O Chico Buarque. São grandes poetas e músicos que estão fazendo coisas novamente consideradas menores, mas que não são menores”, diz Cicero, ao comentar o estardalhaço em torno do Prêmio Nobel de literatura concedido a Bob Dylan. Na entrevista a seguir, ele fala sobre filosofia, o Brasil e a poesia no mundo contemporâneo.

Ainda é importante falar de filosofia hoje em dia?
Não se pode evitá-la. Chamo a filosofia de metalinguagem das metalinguagens. Metalinguagem é a linguagem que fala de outra linguagem. Se estou falando sobre um livro de poesia ou qualquer outra coisa, minha linguagem é metalinguística em relação a ele. A poesia é a metalinguagem das metalinguagens. A língua sobre a qual se fala é a língua-objeto. Não é possível falar de filosofia sem filosofar, porque só a filosofia fala de si própria.
A filosofia é a metalinguagem terminal e a poesia é a língua-objeto terminal. Então, você não pode atacar a filosofia sem ser filosófico. E a filosofia, justamente por isso, fala das últimas coisas, ou das primeiras. Ela fala sobre o ser de maneira geral, sobre o sentido da vida. A ética faz parte da filosofia, a estética também. Não tem como evitar. A filosofia puramente quer ser. Tem a ver com a razão e com o intelecto. A religião tem a ver com fé, emoção.

É difícil falar de ética hoje no Brasil?
O problema que vejo no Brasil é que todas as ideologias tradicionais funcionam quase como uma religião. Os conjuntos de ideias que as pessoas tinham sobre o Brasil ou o mundo, aparentemente, falharam todos.
Depois da queda da Cortina de Ferro, tudo falhou. Parece que não deu certo. As previsões e as esperanças para a esquerda não deram certo. A URSS não funcionou, a China maoísta, que era contra a URSS porque achava que tinha um marxismo-leninismo mais puro, não deu certo. Isso criou uma situação muito complicada para as pessoas que tinham essa ideologia, o que não quer dizer que as ideologias de direita sejam melhores ou funcionem melhor. Não acredito nisso. Na verdade, nenhuma deu certo. Agora é hora de se pensar de novo no que Marx realmente queria.

Como assim?
O materialismo dialético, que é a filosofia do marxismo, não deu certo. Karl Popper, um pensador austríaco, dizia que a ciência – e Marx pensava que tinha feito uma filosofia científica – não pode estar sempre procurando provar que está certa, como faz o marxismo. Ao contrário, a verdadeira ciência está sempre procurando coisas que poderiam “desprovar” o que ela afirma. Está sempre se submetendo a testes. Enquanto os testes não destruírem a teoria científica, ela se segura. Mas, no futuro, pode vir alguém que faça uma experimentação e mostre que tudo está errado. A ciência é isso, está sempre ali sendo testada.

O que faz do poema um poema?
Essa coisa é muito difícil de responder. Já tive várias maneiras de falar desse assunto. Não existe uma definição que seja universalmente aceitável do que é poesia. Goethe dizia que a gente fala da poesia como uma das artes, mas isso está errado: a gente devia pensar nas artes como uma das várias formas de poesia. E em poesia como se fosse um nome para as artes em geral. E tem a poesia que produz os poemas. Não só versos, porque há poemas em prosa e poemas visuais. O importante nas diferentes artes é que elas nos oferecem uma maneira de apreender o próprio ser, a vida, o mundo, diferente daquela que temos cotidianamente.

E como é a nossa forma de ver o mundo no cotidiano?
É muito utilitária, não tem jeito. A gente faz as coisas todas tendo em vista determinados propósitos, determinadas finalidades. Tudo é muito calculado. A gente apreende o mundo a partir dessa maneira de ver as coisas, cada coisa tem um sentido, serve para uma coisa. E a gente tende a ver as próprias pessoas assim. A poesia, não.

Como você fala em um dos textos do livro, a poesia possibilita uma nova dimensão do ser. Que dimensão é essa?
A gente passa a apreender o mundo de maneira diferente quando entra num poema, numa pintura, numa peça musical. Nosso mundo se amplia, porque a gente percebe as coisas de uma maneira que não percebia antes. É como se fosse uma outra dimensão. Existe a dimensão utilitária e existe essa dimensão estética, usando essa palavra com cuidado porque muita gente pode apreender o próprio estético como utilitário, como se fosse o que a gente acha bonito. Não é isso, é uma coisa mais ampla. Vamos dizer, apreender de um modo artístico a linguagem, sentir. Isso enriquece nossa maneira de estar no mundo. Devemos ter essa maneira de estar no mundo mesmo sem estar lendo um poema. É possível curtir as coisas de uma maneira diferente. A poesia nos leva a isso e nos abre muitas perspectivas sobre as diferentes coisas que estão no mundo e na nossa vida. Ela faz isso subvertendo a maneira normal de a gente realmente ver as coisas, captar, apreender.


Falou-se muito da ligação entre música e poesia quando Bob Dylan ganhou o Nobel, mas no Brasil essa discussão existe há muito tempo. Falamos mais nisso por aqui devido à música que temos?
Acho que sim. No Brasil aconteceu mais fortemente do que nos outros países essa compreensão de que não é possível separar radicalmente o que é alta cultura, cultura erudita, do que é cultura popular. A ideia, que é uma ideia moderna e necessária, é que não se julgue uma obra a partir do lugar que a ela é convencionalmente designado. Trata-se de uma obra erudita ou popular? Não. O que interessa é, primeiro, você olhar a própria coisa e ela ser capaz de ter esse efeito de que falei, estético ou artístico. Pode ser mais forte ou menos forte, mas isso não depende de ela ser erudita ou popular. O Bob Dylan pode, de repente, ter isso tão forte quanto um compositor de música erudita. Não dá mais para julgar com preconceito.

Qual é o papel da bossa nova e da Tropicália nisso?
A bossa nova foi quem realmente tematizou isso e compreendeu totalmente o que tinha acontecido. E quem fez isso mais claramente ainda foram os tropicalistas. Eles compreenderam totalmente a situação e fizeram uma revolução nesse sentido. Isso foi muito importante. Eles tornaram possível a gente compreender que aquela hierarquia tinha dançado.

Você vislumbra alguma outra revolução assim na cultura brasileira?
Não. Mas acho que não precisa ter. Já foi feita essa revolução, já se sabe disso. O que tem é muita coisa muito ruim e algumas poucas coisas boas. Mas sempre foi assim, em todas as épocas e em todas as áreas. A gente sempre acha que agora é pior. Tenho a impressão de que quem viveu a experiência tropicalista pode ter isso muito forte. Eu vivi, mas tento me conter, porque, às vezes, acho que ainda não deu tempo de perceber as coisas boas que estão sendo feitas. Há tanta coisa. A internet multiplicou. Todo mundo escreve poesia hoje. Mesmo quem não gosta. É estranhíssimo. E claro que a maior parte não é boa, mas alguns poetas são muito bons.

A internet fez mal à poesia?
Acho que não fez mal, mas permitiu a muita gente escrever. Isso tem um lado bom, talvez pessoas que não apareciam antes apareçam agora. Mas há tanta coisa que é muito difícil você filtrar. Demora um tempo. Essas coisas vão sendo filtradas com o tempo.

A POESIA E A CRÍTICA
>> De Antonio Cícero
>> Companhia das Letras
>> 236 páginas
>> R$ 44,90

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