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Criador do Sempre um Papo, Afonso Borges lança livro de contos

Autor mineiro autografa nesta segunda (19) 'Olhos de carvão', obra em que dá forma à memória de histórias vividas ou ouvidas

Carlos Marcelo
Um dos guardiões da literatura brasileira abre as gavetas e apresenta suas armas.
O mineiro Afonso Borges, criador do projeto Sempre um Papo, que há mais de 30 anos dá luz e voz a escritores e outros brasileiros notáveis que têm muito a dizer, autografa nesta segunda-feira (19), no Mercado Distrital do Cruzeiro, a partir de 19h, o seu primeiro livro de contos: Olhos de carvão.

E que estreia. As histórias de Afonso são de alto impacto. Quase todos os contos são curtos, tensos. Intensos. A elipse dos verbos, o ritmo imposto pela pontuação, a economia de palavras, os títulos instigantes, as elipses de ações, a recusa à repetição. Recursos capazes de criar e desvanecer atmosferas em duas, três páginas. As referências a outros tempos – da literatura, da cidade, da vida urbana – aparecem aqui e ali.
 
E as frases contundentes – “Quando sentiu, já estava no chão”, “Sentiu o portão, o frio”, “Ambos, noite sem estrelas”, “A eternidade recomeça”, “O amor tarda” – se espalham ao longo das 111 páginas.
“De onde Afonso Borges tirou essas histórias? Em que camadas invisíveis da realidade elas se escondiam e que só ele poderia contá-las?”, pergunta Ruy Castro. “Um gênero tão difícil, tão ingrato. Mas não para Afonso, que o abraçou com paixão e conseguiu criar algo novo: um estilo”, acredita Mary del Priore. A seguir, uma entrevista com o autor: 

Como surgiu essa coleção de histórias? Foram tramadas isoladamente ou escritas todas de uma vez?
Recebi um convite para escrever um conto sobre superação para uma coletânea. Daí surgiu um modo de escrever que me espantou: histórias entrelaçadas, separadas por parágrafos. Como se fosse um diálogo. Em tese, escrevi para teatro. Imaginava duas pessoas conversando, em tempo e espaço diferentes. E histórias diferentes que se fundiam – ou não – no final. Foram escritas, todas, no curso de um ano, em 2016. Nada é antigo. 

Na orelha do livro, Alberto Mussa atesta: “Há um estilo aqui”. Que estilo é esse?
Sinto que é uma trama, um novelo. Apenas uma página de A terceira margem de um rio, de Guimarães Rosa, tem mais ação do que muitos livros inteiros.
Imaginei um pacto entre realidade e ficção com o leitor. Acontece que 90% do que escrevi, de fato, eu vivi, ou me contaram. E hoje vejo que o leitor topou esse pacto. Ele começa a ler e pensa: “Opa, isso aqui é real”. Essas vozes entrelaçadas são recorrentes no mundo de hoje, onde você faz três, quatro coisas ao mesmo tempo. São níveis de consciência. 

“Os olhos de Lucas experimentam o olhar triste do mundo”. O seu olhar carrega também o olhar de Lucas?
Permanentemente. Mas não creio que estou sozinho neste bonde. Passamos por um período de transição tão violento que acredito mesmo que o ser humano está em mutação. E a tristeza é um sentimento que nos leva à reflexão.
E a imagem dos olhos de vidro de Lucas, metáfora que a Marcia Tiburi nos propôs, revela a sociedade alternativa do século 21: a do vidro e seu reflexo. Temos à frente dos nossos olhos o computador, o celular, a TV, o tablet e, no meu caso, entre eles, óculos. Tudo é vidro. 

Os títulos dos contos são fortes e instigantes. Como chegou até eles?
Boa a sua pergunta. Como sou jornalista, pensei em colocar títulos e subtítulos que funcionassem como “olhos” da matéria. Mas depois que passei o texto para algumas pessoas, entre elas, Nélida Piñon, senti que interferiam demais na leitura. 

A violência urbana é tema de um dos contos de maior impacto, Assaltos, anjos e o oratório, que se passa no Bairro Santo Antônio. Como a vivência em BH influenciou esta e outras histórias?
Esta e outras vivências são pura realidade. Este caso é real, aconteceu com uma pessoa que trabalha conosco e inventei pouquíssima coisa. Na verdade, eu me projetei na alma da mulher do ladrão, que recebe a bolsa em casa. Quem rouba a bolsa de uma mulher tem uma mulher em casa. Mas o que mais me impressiona neste conto é o final, quando ela o vê atravessando a rua para assaltar e não o reconhece mais. E outras histórias, como a que dá título ao livro, na Igreja de São José, as que foram frutos de meu tempo como repórter de polícia, ou as juras na Igreja de Lourdes com a minha primeira namorada. Tudo é memória. Literatura é só memória. 

Um dos contos tem como personagens Murilo Rubião e Bartolomeu Campos de Queirós. Como foi sua convivência com eles e o que guardou na memória em relação aos dois escritores? 
Exatamente. Quando era jovem, me encontrava sempre com o Murilo Rubião subindo a Avenida Augusto de Lima. A cada vez, ele me contava um final diferente para o mesmo conto. Já Bartolomeu é amigo da vida inteira e me influenciou tremendamente. Penso que uma outra versão do meu livro pode ser interpretada como poemas em prosa, em homenagem a Bartolomeu Campos de Queirós. Mas é muita pretensão minha imaginar que posso chegar a seus pés. 

Sua prosa é enxuta e os contos, breves. Acredita que o fato de ter escrito três livros de poesia influenciou Olhos de carvão?
Sim. A carga poética contaminou a ficção, mesmo sem eu querer. Sinceramente, não sei se para o bem ou mal. Não gosto de textos em prosa extremamente poéticos. Tem que haver ali um tempero bem dosado para que o leitor não se sinta enganado. O ideal é que ele se sinta levado, se sinta levitando entre o real e o imaginário, trânsito perfeito para a boa literatura. 

O conto O vulcão, o rum e a bola dividida entre continentes tem tom memorialista. São as suas lembranças? O que você emprestou de sua memória para os contos de Olhos de carvão?
Sim, minha literatura é pura memória. São histórias que vivi ou que me foram contadas. A bola dividida entre continentes é a bola que eu, Júnior e Pelezinho, amigos de infância ali na Rua Guajajaras, entre Olegário Maciel e Bias Fortes, jogávamos. A história da porrada na cabeça e a “ressurreição” é real, aconteceu comigo. Aquilo de jogar a bola entre as rodas dos ônibus é real. Mas o segredo é a sinceridade: o leitor deve sentir que é real. A melhor ficção é a que parece realidade. Porque a realidade vai além, e muito, da ficção.

Onde Minas é mais inspiração?
De novo, é na memória. A nossa tradição literária é uma referência. Imagine que aqui, em Belo Horizonte, na década de 1930, formaram-se as cabeças mais interessantes do Brasil: Rosa, Nava, Drummond, Pitanguy; na década de 1940, Sabino, Pellegrino, Otto e Mendes Campos; nas décadas de 1950, 1960, Humberto Werneck, Sant’Anna, Gabeira e tantos outros. O problema é que olhamos pouco para o nosso umbigo, por defeito de formação. Uma falsa modéstia. Ou melhor, uma modéstia falsa. Infelizmente, os mineiros preferem o umbigo dos outros. 

Quais os contistas brasileiros que estão entre as suas referências?
Antes, dizer do próprio gênero: os melhores textos de Rubem Fonseca são contos. Agora vai a lista: Murilo Rubião, no topo; Dalton Trevisan, Jaime Prado Gouvêa, Duílio Gomes, Luis Vilela, Sérgio Sant’anna, Francisco de Morais Mendes, Carlos Herculano, Aníbal Machado, Luiz Ruffato, João Batista Melo, Humberto Werneck, Ivan Ângelo, Ronaldo Cagiano. O pior de fazer listas é esquecer alguém. Mas vou correr o risco. 

Quem o fez gostar de ler? Quem o fez se sentir impelido a escrever?
Meu primeiro impulso foi a obra de Monteiro Lobato. Ganhei, quando criança, uma coleção das obras completas que lia e relia. Mas aprendi a ler sozinho, em gibis e na Seleções, na fazenda do meu tio, em Muriaé, ali pelos 5 anos. Mas foi fundamental para a minha formação a leitura dos clássicos entre os 17 e 25 anos. Lia tudo o que passava pela frente, pegando sempre em bibliotecas públicas. Depois, não parei mais. E meus mais recentes 40 anos têm na leitura o centro da minha vida. 

Eis a primeira frase do primeiro conto: “Aquela ligação que todos os escritores esperam”. Qual foi a ligação, ou mensagem, mais esperada pelo produtor Afonso Borges desde que começou o projeto Sempre um Papo, em 1986? Como o projeto alimenta a sua literatura e a sua vida?
A mais esperada foi a mais inesperada: a primeira. O escritório do projeto, em 1986, era na garagem de um jardim de infância, na Floresta. Não tínhamos telefone. Aliás, não tínhamos nada. A querida dona Jandira, a dona, veio e disse que uma pessoa estava chamando ao telefone geral, da escola. Subi e, quando atendi, uma voz disse: “Eu topo! Gostei deste negócio. Vamos marcar”. Era João Saldanha, para quem havia enviado uma carta, dias antes, com selo e tudo. 

Como o projeto alimenta a sua literatura e a sua vida?
Quanto ao alimento, é da ordem da alma. O olhar agradecido das pessoas, ao final dos eventos, me diz tudo. São 31 anos sentindo essa boa vibração vinda das pessoas que recebem, das palavras dos autores, a melhor das vibrações: a do conhecimento. Esse “obrigado” ao final não tem preço.

Quais as perguntas que o produtor e apresentador do Sempre um Papo não poderia deixar de fazer ao autor de Olhos de carvão?
De onde você tirou essas histórias, seu maluco? Esse olhar de carvão vem dos demônios? Esses demônios são parte de você? E por fim: para que escrever? 

OLHOS DE CARVÃO
. De Afonso Borges
. Editora Record
. 112 páginas
. R$ 29,90

. Lançamento segunda-feira (19/6), às 19h. Mercado Distrital do Cruzeiro, Rua Ouro Fino, 452, Cruzeiro.

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