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Livro resgata a vida e a obra do ilustrador brasileiro Belmonte

Pesquisador Gonçalo Junior resgata a história do ilustrador brasileiro que retratou os costumes e a política e infernizou líderes políticos com seus desenhos

Breno Pessoa Pablo Pires Fernandes
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O último desenho de Belmonte publicado na Folha da Manhã, em 27 de abril de 1947, oito dias após a morte do artista, trazia as silhuetas de Dom Quixote e Sancho Pança cavalgando em direção ao horizonte. Simbólica, a ilustração era adequada para homenagear o autor, reconhecido pelo idealismo e bravura típicas do personagem de Cervantes. Porém, ao contrário do fidalgo do romance espanhol, o ilustrador não era uma figura deslocada no tempo e, sim, alguém com um olhar muito aguçado sobre a época. Sua contundência e mordacidade, porém, resistem ao tempo. Ao observar os cartuns de Belmonte, o leitor de hoje certamente vai se impressionar com a atualidade de alguns temas,

Um dos maiores cartunistas do país, ele tem parte da obra resgatada no livro Belmonte, editado pela Três Estrelas. O volume, organizado por Gonçalo Junior, sintetiza a vida de Benedito Bastos Barreto, o Belmonte, e reúne obras produzidas entre os anos 1920 e 1940, principalmente o material publicado nos jornais Folha da Noite e Folha da Manhã, nos quais trabalhou de 1921 a 1947. Variada, a seleção feita no livro representa uma parcela da extensa produção, estimada em 10 mil trabalhos, entre desenhos e crônicas.

O nome adotado pelo artista, aliás, tem relação com essa produtividade. Inicialmente assinando apenas pelo sobrenome Barreto, ele procurou um pseudônimo para colaborar em outras publicações no mesmo período em que trabalhava no Folha da Noite.
Pegou emprestado do escritor espanhol Rafael Blanco Belmonte e, por gostar da sonoridade, adotou o nome Belmonte em definitivo.

Antes de adotar a alcunha, o garoto nascido no Brás se dedicou desde bem jovem ao desenho. A figura magra, de andar curvado e trajes distintos, expressava olhar triste. Como narra o autor do livro, Belmonte era meio calado, mas sempre estava rabiscando. Começou a publicar em revistas independentes, editadas por grupos de amigos idealistas, mas seu talento o levou a colaborar para revistas de maior envergadura.

Em 1921, depois de publicar em pequenas revistas, foi convidado pela revista Careta para substituir J. Carlos, o mais importante ilustrador da época. Não se adaptou ao calor carioca e voltou para São Paulo. Logo depois, foi chamado para trabalhar na recém-fundada Folha da Noite. O trabalho mais constante no diário permitiu que o talento de Belmonte se espalhasse.

Nos jornais, ficou conhecido com o personagem Juca Pato, espécie de alter ego que dava vazão às críticas de Belmonte sobre o cotidiano de São Paulo e questões de aspecto mais amplo, como burocracia, racismo, carga tributária e até ecologia. Juca, criado em 1925, tornou-se símbolo das queixas contra os donos do poder e alcançou grande popularidade.

Depois da Revolução de 1930, Getúlio Vargas foi um dos temas constantes da pena afiada de Belmonte, cujos cartuns ironizavam o presidente, com ou sem a presença do personagem Juca Pato. Foi nessa época que Belmonte passou a mostrar um trabalho cada vez mais politizado e se tornou o cartunista mais incisivo contra o presidente, a ponto de ser proibido de retratar o político durante o período conhecido como Estado Novo.

Uma das razões para essa postura foi o ataque feito por partidários de Getúlio Vargas à redação das Folhas, em outubro daquele mesmo ano. Os veículos, que apoiavam Júlio Prestes naquela eleição, tiveram as redações destruídas e voltaram a circular normalmente somente no fim de dezembro.

Outra figura que virou alvo recorrente do lápis do artista foi o führer alemão Adolf Hitler. Em decorrência da censura imposta por Getúlio Vargas, o cartunista passou a direcionar esforços para personagens da política internacional. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), além do ditador alemão, ele se dedicou a atacar o italiano Mussolini, o inglês Churchill e o soviético Josef Stalin.
Nessa época, seus cartuns alcançaram também revistas e jornais da Europa. A mudança de foco não livrou o autor de problemas: em decorrência de queixas do Consulado do Japão em São Paulo, Belmonte foi proibido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de retratar o imperador japonês Hiroíto.

Como ilustrador, foi responsável também por capas e desenhos de livros de autores variados, como o português Eça de Queirós e o historiador brasileiro Viriato Correia. Belmonte foi, ainda, um dos primeiros artistas a desenhar personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo e ilustrou cinco livros de Monteiro Lobato entre 1929 e 1937. O contato com a literatura infantil o incentivou a criar personagens para o suplemento A Gazetinha, do jornal A Gazeta, a dupla Bastinho e Bastião, que estrelou uma série em quadrinhos de teor educativo.

Seu talento extrapolava o universo dos jornais, em que também atuava como cronista, com a mesma verve irônica e perspicaz de seus cartuns. Foi retratista e pintor e a prolífica carreira incluiu também incursões como historiador, e uma das principais contribuições na área é o livro No tempo dos bandeirantes. Publicado em 1939, o volume sobre o período colonial brasileiro se destaca pela ricas ilustrações feitas segundo levantamento iconográfico da época.

Diagnosticado com tuberculose em 1946, Belmonte continuou produzindo mesmo durante a doença, em uma prancheta improvisada na cama. Morreu na madrugada de 19 de abril de 1947, aos 50 anos. ''Belmonte pôde levar a charge política no Brasil a um nível inédito de inteligência crítica, sofisticação visual e relevância social, ao mesmo tempo em que contribuía para criar a identidade moderna de uma capital, São Paulo'', assinala o organizador do livro, Gonçalo Júnior.
 
Como era o ambiente em que Belmonte se formou?

Belmonte se formou em uma época mágica da história cultural de São Paulo que ainda espera por um resgate, como tem sido feito há meio século com o Rio de Janeiro. Do caso carioca, até histórias de confeitarias foram contadas. São Paulo se industrializava.
Só entre a Praça da Sé e da República existiam 28 teatros com até 3 mil lugares. Uma infinidade de cafés e os cinemas deixavam os barracões improvisados para ocupar salas  de luxo e ou conforto. Mas nada sabemos das livrarias e muito pouco da vida intelectual. Belmonte tinha sua turma, principalmente formada por jornalistas e escritores.

Como Belmonte chegou à imprensa?

São Paulo não tinha as revistas de expressão nacional como acontecia no Rio, onde circulavam O Malho, Revista da Semana, Careta, Fon-Fon! e Eu sei tudo, entre outras. Aqui, o destaque era A Cigarra e outras de vida efêmera. Os jornalistas, principalmente editores como Paulo Duarte, sabiam da importância do cartum, da caricatura e das histórias em quadrinhos para a imprensa carioca e mundial. Como Belmonte era amigo de muitos deles, dividia as mesas dos cafés e bares, isso facilitou que ele começasse a abrir espaço para o humor gráfico. Nesse sentido, foi um desbravador.

Belmonte teve uma resposta popular muito grande. É possível dimensionar a capacidade dele de vocalizar os anseios públicos?

Isso é possível a partir da consulta às edições diárias da Folha da Noite e da Folha da Manhã. Consultei todas as edições de 1921 a 1947. A Folha da Noite transformou Belmonte no seu diferencial. Ele ocupava, muitas vezes, metade da primeira página quase todos os dias. Escrevia crônicas, lançava livros, fazia exposição, foi homenageado por políticos, entidades da imprensa, milionários, gente do teatro. Juca Pato foi tema de marchinhas de carnaval e peças de teatro e deu nome a bares, cafés e restaurantes. Era onipresente na cidade. A sua popularidade, portanto, parece-me inquestionável. Ajudou nisso ele bater muito em problemas crônicos da cidade – falta de água e de saneamento, insegurança, violência – e do país, como a inflação e os desmandos políticos.

O que a criação do personagem Juca Pato representou na carreira de Belmonte?

Juca Pato ficou mais famoso que Belmonte. Quer dizer, alguém poderia não se lembrar de quem era ele, mas conhecia Juca Pato. Para os leitores, ele virou um porta-voz das reclamações, uma tribuna de queixas para melhoria das condições da cidade. Para Belmonte, deu fama nacional, embora ele claramente tentasse gerenciar seu uso para não cansar os leitores e, creio, mostrar que seu trabalho e sua arte iam além.

A crítica ferrenha de Belmonte a Vargas o colocou como um catalisador da oposição ao ditador desde 1930. Como, hoje, você dimensiona o impacto do trabalho dele na opinião pública?

Ele foi um caso único na imprensa nacional a se posicionar de modo tão contundente. O Rio tinha muitos grandes cartunistas e chargistas, mas nenhum ousou tanto quanto Belmonte. Não podemos nos esquecer, porém, de que ele tinha um motivo extra, a humilhação decorrente da Revolução de 1932, com a derrota dos paulistas e a imposição de um interventor no Estado – o coronel João Alberto Lins de Barros, o mesmo que depois ajudaria Adolfo Aizen a lançar os heróis dos quadrinhos no Brasil, pelo jornal A Nação, em 1933. Mas, nesse caso, a militância de Belmonte se restringiu ao estado de São Paulo. Havia um abismo, uma relação abalada entre cariocas e paulistas nesse momento. Somava-se a isso a censura do Estado Novo, que não deixaria seus cartuns contra Vargas serem publicados no Rio. Só com a Segunda Guerra Mundial Belmonte brilhou em todo o país.

Belmonte foi um crítico contundente de Getúlio Vargas e Hitler e isso contribuiu para sua popularidade. Como vê essa crítica?

Hitler era uma extensão de Vargas, que não escondia sua simpatia pelos regimes autoritários em voga na Europa naquele momento. Como era um democrata e defensor ferrenho da democracia, ele combatia Hitler duplamente, tentando reforçar sua insanidade e, assim, atrelá-la ao ditador brasileiro. Belmonte era muito inteligente e usava a sutileza para aporrinhar Vargas. Ao mesmo tempo, fazia isso com uma contundência impressionante.

Qual a dimensão que o humor, a sátira gráfica, em cartuns e quadrinhos, desempenharam na imprensa brasileira, historicamente?

O humor gráfico brasileiro nasceu sob a influência do humor francês, bastante ousado e confrontador. Na verdade, toda a imprensa brasileira se espelhou na francesa no século 19. Essa ''coragem'' para confrontar o poder à francesa durou mais de um século e foi asfixiada pela ditadura Vargas por meio da censura. Passamos as três décadas seguintes com um cartunismo morto, medroso até, à exceção de Belmonte, que tentou de todas as formas furar o bloqueio da censura. A coisa voltou às origens durante a ditadura militar, com o jornal O Pasquim e, em especial, Henfil, um suicida total que infernizou o poder no regime militar, graças à sua inteligência para driblar a burrice da censura. Gosto de comparar Henfil com Belmonte. Eram muito parecidos. Hoje, nosso humor gráfico anda de mal a pior, sucumbiu ao politicamente correto, à era das celebridades. Cartunista atualmente, com raras exceções, quer apenas ser famoso. Acabou aquela bobagem de fazer oposição, que é a essência dessa arte gráfica. 

Qual é a especificidade desta linguagem no dia a dia jornalístico?

O humor é uma arma poderosíssima. Primeiro, vem a risada. Depois a reflexão. Hoje, felizmente, temos os memes para substituir o humor quase morto da imprensa. Os memes são impiedosos, implacáveis, contundentes, livres. Na imprensa escrita ou virtual, isso não é possível. A ditadura do politicamente correto e dos interesses políticos e empresariais não permite. Nesse sentido, o trabalho do cartunista acaba mais visado, pois se reproduz nas redes socais mais cartuns do que textos jornalísticos. Pelas próprias características visuais dessa forma de comunicação.

Como vê a mudança da linguagem jornalística do papel para a internet?

A internet é hoje uma ferramenta forte para dar voz aos cartunistas sem que eles precisem das revistas e dos jornais. O mercado, antes bem restrito, com um ou dois cartunistas por jornal, não importa mais tanto. Ou, pelo menos, os artistas desencanaram e tentam abrir outras portas. Temos muitos livros publicados de quadrinhos e cartuns cujos autores jamais saíram em publicações impressas. Isso é maravilhoso. Antigamente, o cara, ainda jovem, ia a uma redação, tinha seu trabalho recusado e seguia outra profissão. Agora ele pode evoluir, sentir a reação das pessoas, redefinir seu trabalho, melhorar o traço, crescer, encontrar editor e viver da sua arte. É maravilhoso.

*Gonçalo Junior é jornalista, escritor e pesquisador de quadrinhos
 
- Foto:
BELMONTE
De Gonçalo Júnior
Três Estrelas
160 páginas
R$ 54,90
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