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Livro reúne cartas trocadas entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre

Correspondências entre dois dos maiores intelectuais brasileiros do século 20 são publicadas e analisadas no livro 'Cartas provincianas'

Fellipe Torres

Manoel Bandeira, radicado no Rio de Janeiro, aproximou-se de seu Recife natal por meio de Gilberto Freyre. - Foto: O Cruzeiro/Arquivo EM - 22/12/68

Foi um artigo sobre pratos da cozinha nordestina – doce de goiaba, tapioca molhada e munguzá – o fator estimulante para o primeiro contato entre o poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1969) e o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987). Este último, autor do texto publicado em um jornal, recebeu carta ''cheia de simpatia'' do conterrâneo, àquela altura (em 1925) radicado no Rio de Janeiro. A resposta seguiu junto com um pedido, quase exigência: um poema sobre a capital pernambucana da infância de Bandeira, com o objetivo de compor a coletânea Livro do Nordeste. O resultado (Evocação ao Recife), gabou-se Freyre mais tarde, foi ''um dos maiores poemas que já se escreveram na nossa língua''.

Esse tipo de minúcia sobre os 50 anos de companheirismo dos dois intérpretes do século 20 é material farto no recém-lançado Cartas provincianas – Correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira (Global Editora), organizado pela pesquisadora Silvana Moreli Vicente Dias, pós-doutora em letras e linguística.

''Depois do primeiro encontro, toda uma trajetória de amizade, respeito, mútua compreensão, simpatia e grande alegria se consolida. Ao longo de mais de cinco décadas, os companheiros de leitura, trabalho e boêmia compartilham amigos e frequentam-se como membros de uma mesma família'', escreve a autora.

 

Quando finalmente recebeu um exemplar do Livro do Nordeste, Bandeira respondeu a Freyre com euforia: ''Passei a tarde toda com o nariz metido no álbum do Diário. Feito menino que ganhou um livro muito bonito... Que prazer tive de olhar os desenhos do (pintor Manuel) Bandeira! Quem é esse estupendo xará? (...) Gilberto, como vocês me trataram carinhosamente, como ficou bonita a colocação dos meus versos''.

Um ano depois, logo após a primeira visita ao amigo no Rio de Janeiro, o autor de Casa-grande & senzala registrou: ''Vou visitar Manuel Bandeira. Lindo lugar.

Mas casa de pobre. (...) Quando digo quem sou, desata numa risada que deixa à mostra sua dentuça já famosa que lhe dá ao aspecto alguma coisa de inglês e, ao mesmo tempo, caricatural''. Com a aproximação, Bandeira até ganhou apelidos: seu Nenê e Baby Flag.

CUMPLICIDADE
Para o sociólogo 14 anos mais jovem, a relação de cumplicidade com o poeta representava uma chance de se familiarizar com as rodas intelectuais cariocas, frequentadas sobretudo por modernistas. Para Bandeira, Freyre era uma ponte com a terra natal. Em sua autobiografia Itinerário de Pasárgada (1974), Bandeira escreveu: ''Para completar (e de certo modo contrabalancear) essa influência, havia os amigos do Rio. (...) Lista a que devo juntar, depois de 1925, o nome de Gilberto Freyre, cuja sensibilidade tão pernambucana muito concorreu para me reconduzir ao amor da província''.

 

O volumoso registro da correspondência trocada pela dupla – e, agora, sua disponibilização em formato de livro, com as devidas contextualizações – encontra eco nas palavras do próprio Freyre, ao prefaciar a primeira edição de Casa-grande & senzala (1933): ''Isto é, claro, quando se consegue penetrar na intimidade mesma do passado; surpreendê-lo nas suas verdadeiras tendências, no seu à vontade caseiro, nas suas expressões mais sinceras. O que não é fácil em países como o Brasil; aqui o confessionário absorveu os segredos pessoais e de família, estancando nos homens, e principalmente nas mulheres, essa vontade de se revelarem aos outros que nos países protestantes provê o estudioso de história íntima de tantos diários, confidências, cartas, memórias, autobiografias e romances autobiográficos''.

Entusiasta desse tipo de registro mais voltado para o foro íntimo, o próprio Freyre passa a utilizá-lo de forma sistemática em sua produção intelectual. Fontes primárias, como cartas e diários, somente reforçaram o viés narrativo e ensaístico das obras do sociólogo. Silvana Moreli Vicente Dias explica que em livros como Ordem e progresso Freyre constrói verdadeiras narrativas biográficas utilizando o conteúdo de correspondências.

NOVIDADE
Cartas provincianas reúne 68 correspondências, quase todas inéditas, além de documentos, poemas, ensaios críticos, crônicas e resenhas de ambos os autores. Em um caderno iconográfico, há reproduções de cartas, telegramas, livros autografados de um para o outro e algumas fotografias.

A explicação sobre o título do livro vem do próprio Gilberto Freyre num dos textos republicados: ''Sou provinciano. Com os provincianos me sinto bem. Se com estas palavras ofendo algum mineiro requintado peço desculpas. Me explico: as palavras província e provincianismo são geralmente empregadas pejorativamente por só se enxergar nelas as limitações do meio pequeno.

(...) É provinciano, mas provinciano do bom, aquele que está nos hábitos do seu meio, que sente as realidades, as necessidades de seu meio. Esse sente as excelências da província. Não tem vergonha da província – tem é orgulho''.

CARTAS PROVINCIANAS
Correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira

.Org: Silvana Moreli Vicente Dias
.Editora Global
.464 páginas
.R$ 69

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