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Conceição Evaristo é tema de mostra interdisciplinar em São Paulo

“Não foi fácil chegar aonde cheguei, mas tenho a sensação de que caminhei pelos caminhos certos. No entanto, gosto de frisar que a minha história tem que ser vista com muito cuidado. Há uma tendência de valorizar a meritocracia. Que é só você trabalhar, focar, que consegue. E não é bem assim. Conheço muita gente que trabalhou duro, enfrentou dificuldades e não conseguiu ter êxito” -
Conceição Evaristo,

escritora

 

Quando tinha por volta de 12 anos, Conceição Evaristo escreveu na escola onde estudava, o Barão do Rio Branco, em Belo Horizonte, uma redação da qual nunca mais se esqueceu. Com o título Por que me orgulho de ser brasileira, o texto foi eleito o melhor do colégio. Era o primeiro dos muitos prêmios literários que a hoje consagrada escritora mineira e doutora em literatura receberia ao longo da vida.

Como recompensa, a garota ganhou um missal, livro utilizado nas missas e que contém vários tipos de orações eucarísticas.

Esse objeto, além de textos, fotografias, obras de referência, audiovisuais, manuscritos de poemas, contos e cartas de familiares, faz parte da Ocupação Conceição Evaristo, que será aberta hoje, 03, no Itaú Cultural, em São Paulo, em homenagem à autora, hoje com 70 anos. “Fiz um mergulho na minha história para ajudar na produção dessa mostra. Sempre guardei instintivamente muitos documentos, cartas, porque sou uma pessoa com uma carga memorialística. Estou lidando constantemente com minhas lembranças, principalmente as da infância e da juventude em Minas. Foi bem interessante rever todo esse passado”, afirma Conceição, que nasceu  na favela do Pendura Saia, encravada no alto da Avenida Afonso Pena, e, na década de 1970, mudou-se para o Rio de Janeiro.

Até 18 de junho, o público entrará no mundo da escritora de forma sensorial. Por meio de uma narrativa audiovisual não cronológica, a história será contada tendo como mote o campo afetivo de criação de Conceição. A produtora cultural Ana Estaregui, do núcleo curatorial da Ocupação, conta que, para criar a exposição, além de coletar os objetos e pertences da homenageada, foram realizadas entrevistas com amigos, familiares e com a própria Conceição.
“Não só ela, mas sua luta, suas inspirações, sua maneira de lidar com a vida estão presentes em cada detalhe da Ocupação. Convidamos a Aline Motta, uma artista negra, para nos ajudar na concepção artística do projeto. E outras artistas negras também estão na mostra. A Conceição Evaristo é uma escritora que faz questão de ressaltar o trabalho de outros artistas e escritores afro. Isso era algo que a gente queria focar também”, afirma.

CADERNOS Um dos destaques da mostra é a influência familiar na vida da escritora, que hoje mora em Maricá, na Região dos Lagos fluminense. A mãe, dona Joana, de 94 anos, foi a principal referência. Inspirada pela escritora negra Carolina Maria de Jesus, autora do clássico Quarto de despejo, a lavadeira que criou 9 filhos não tinha estudo, mas colecionava cadernos que achava pelas ruas e os recheava com seus escritos sobre a vida, pensamentos e poemas.”Vamos ter uma sala com os escritos e os cadernos da mamãe. Ela costumava fazer poesias, escrever coisas do dia a dia, como se fosse um diário.
Fui muito influenciada pelas mulheres da minha família”, conta Conceição Evaristo.

Foi a partir daí que surgiu o conceito criado e adotado pela autora de obras reconhecidas como Ponciá Vicêncio e Becos da memória, as “escrevivências”, a escrita que nasce das vivências. Viver para narrar. Narrar o que se vive. “Quando sou escritora, não me desvencilho de quem eu sou. A Conceição de origem pobre, de família humilde e que veio de uma família com mulheres que viveram em situação de subalternidade. Isso sempre orientou a minha escrita. É isso que chamo de escrevivência”, salienta.


Além da própria exposição, a Ocupação traz atrações como mesas, debates, masterclass da autora e apresentações teatrais. A programação também oferece um amplo conteúdo virtual, como entrevistas em vídeo sobre a vida e a obra de Conceição e informações biográficas no hotsite itaucultural.org.br/ocupacao.

“Um outro aspecto interessante é que haverá a retomada do projeto Cartas Negras, criado por Conceição e amigas escritoras, como Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães e Miriam Alves, nos anos 1990. Elas trocavam missivas sobre suas vidas, em uma espécie de debate escrito, sobre vários temas. Agora, além das antigas parceiras, outras escritoras negras foram incorporadas”, acrescenta Ana Estaregui.

A escritora grávida de sua única filha, Ainá - Foto: Rogerio Santos de Brito/DivulgaçãoORGULHO Conceição diz que sente muita falta da cidade natal, mas que a BH de hoje é muito diferente da que deixou, em 1973.
“Toda vez que vou a Belo Horizonte, fico muito tocada. As minhas raízes estão aí. Sabe que meu umbigo e dos meus irmãos estão enterrados onde hoje fica o Mercado do Cruzeiro? Era uma tradição do pessoal do interior. Isso é muito forte; é realmente uma relação umbilical. Mas é uma outra cidade. Eu me sinto um pouco traída quando volto aí, porque tudo mudou. Não é mais aquela cidade que eu deixei”, comenta. Para ela, o que mais dá orgulho em sua trajetória é ter conseguido realizar o que queria, concluir o magistério, mesmo longe da família. Ela diz que não imaginava que hoje estaria colhendo os frutos de uma escrita construída com luta e sacrifício, sem que nada tenha sido alcançado de mão beijada. “Não foi fácil chegar aonde cheguei, mas tenho a sensação de que caminhei pelos caminhos certos.
No entanto, gosto de frisar que a minha história tem que ser vista com muito cuidado. Há uma tendência de valorizar a meritocracia. Que é só você trabalhar, focar, que consegue. E não é bem assim. Conheço muita gente que trabalhou duro, enfrentou dificuldades e não conseguiu ter êxito. Essa história de superação é vista como exceção. E não deveria ser assim; deveria ser regra. Que tomem a minha trajetória como exemplo para refletir sobre isso; que há algo errado”, analisa.

NOVOS LIVROS Conceição Evaristo tem dois projetos literários encaminhados: um romance e um livro de contos. O primeiro reúne memórias ficcionalizadas sobre a saga dos africanos e seus descendentes no Brasil. “É a história de uma matriarca que vai fazer 107 anos, mas não quer festa. Seu único desejo é reencontrar seus descendentes que estão espalhados por aí”, relata. Já a segunda publicação vai seguir sua escrita centrada no cotidiano das mulheres negras, mas desta vez ela insere o contexto masculino. “Quero agora fazer dos homens negros os protagonistas. Minha intenção é concluir os livros no segundo semestre”, avisa.

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