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Falta de recursos, oportunidades e reconhecimento provocam êxodo de artistas de Minas há décadas

Atual desaceleração da economia fez patrocínios minguarem, agravando o cenário

Márcia Maria Cruz Anna Marina
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Minas Gerais convive desde sempre com o exôdo de talentos artísticos que vão em busca de oportunidades. Na leva mais recente de partidas, inclui-se a escritora Gisele Mirabai, de 36 anos, vencedora da primeira edição do Prêmio Kindle de Literatura, promovida no ano passado pela Amazon e a Nova Fronteira. A belo-horizontina trocou Minas por São Paulo desde 2014. Questões pessoais, como a mudança da irmã e da mãe para a capital paulista, contribuíram para que ela fizesse as malas para deixar a capital mineira. No entanto, o que mais pesou foi o sentimento de que, “entre as montanhas”, Gisele não conseguiria realizar seu ofício. “A sensação era de que, em Belo Horizonte, sempre ficava na dependência de editais e leis de incentivo. Isso me angustiava um pouco”, afirma.

A escritora afirma que se mudou para São Paulo em busca da valorização financeira de seu trabalho. Em sua avaliação, por lá há um mercado editorial mais aquecido, que permite obter patrocínio não só junto ao poder público, mas também na iniciativa privada. “Em São Paulo tenho uma rede de contatos que não tinha conseguido estabelecer em Belo Horizonte”, diz. No campo literário, ela destaca como Minas é celeiro de talentos. “É impressionante a profundidade e o olhar poético e específico do mineiro.”

No entanto, em sua avaliação, muitas vezes é preciso sair do estado para conseguir projeção nacional
. “O nó que sinto é em espalhar o que é feito para o resto do país. Um amigo brinca que as montanhas nos escondem e que o minério de ferro nos puxa.” A história de Machamba, personagem que dá nome ao livro com o qual Gisele venceu o prêmio, se passa numa fazenda na região de Itabirito e depois em Belo Horizonte, para onde vem fazer faculdade. “Minas é sempre referência para mim”, afirma. Conforme ressalta, a internet tem sido importante aliada para que os artistas em Minas possam ultrapassar as montanhas. “Temos sempre mineiros como finalistas de prêmios literários. Falta honrar esses escritores para que o trabalho possa circular.”

No entanto, um mineiro que se tornou fenômeno por seu trabalho na internet também decidiu se mudar para São Paulo em 2015, aos 18 anos, precisamente por razões profissionais. Marco Túlio Matos Vieira, o autor do canal Authentic Games no YouTube, em que divulga tutoriais do jogo Minecraft, foi em busca de uma internet mais veloz. “No lugar onde eu morava em BH, o Bairro Nova Granada, o serviço de internet era precário, chegava no máximo a 15 megas. Em São Paulo, tenho uma net mais rápida e, para o meio do YouTube, aqui tudo é mais fácil, todo mundo está aqui’’, disse ele ao Estado de Minas em março de 2016, quando reuniu uma legião de fãs no lançamento de sua biografia AuthenticGames – Vivendo uma vida autêntica (Astral Cultural).

PROJETOS Com a partida de profissionais, não se perdem apenas talentos. Outras consequências estão relacionadas ao fato que projetos de relevo deixam de ser realizados no estado
. Ao se mudar para São Paulo, o produtor, ator e gestor cultural Guilherme Marques levou consigo iniciativas importantes que fomentam a reflexão sobre o fazer teatral. Idealizador do Ecum - Encontro Mundial das Artes Cênicas, desenvolvido na capital mineira no fim dos anos 1990, Guilherme revela que pesou para que se mudasse para a capital paulista (em 2011) a redução no montante de recursos obtidos para realizar os projetos.

Enquanto portas se fechavam por aqui, outras se abriam em São Paulo. O convite para migrar para o estado vizinho incluía a oferta de estrutura para as ações. “(Em BH) Perdemos o patrocínio da Usiminas, da Petrobras. Por cinco edições não conseguimos aprovar o projeto do encontro na Lei Municipal de Cultura”, conta. Diante desse cenário, Guilherme não titubeou para arrumar as malas. “O convite incluía a possibilidade de ter uma sede, o desenvolvimento de ações reflexivas e formativas e apresentação de espetáculos”, diz.

Juntamente com o também mineiro Antonio Araujo, que migrara para São Paulo muito antes, onde fundou o Teatro da Vertigem, Guilherme é realizador da MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que privilegia a experimentação e a investigação em artes cênicas. O produtor afirma que, com a crise econômica e institucional pela qual passa o Brasil, a cultura é a área que mais sofre cortes.

As perdas na área da cultura acompanham a desaceleração da economia mineira. O diretor artístico do Grupo Corpo, Paulo Pederneiras, destaca que a queda no preço das commodities no mercado internacional deixa o estado mais pobre. Na área cultural, o reflexo se sente na redução de patrocínios. Ele destaca que o grupo não alterou as atividades, mas diversificou o leque de patrocínio. O maior patrocinador da companhia é a Petrobras, mas os aportes foram reduzidos ao longo dos anos.

De patrocinadora exclusiva, atualmente a empresa garante 30% do montante necessário para o grupo se manter. “A Petrobras ainda é a nossa patrocinadora máster, mas precisamos diversificar”, diz. No ano passado, o grupo lançou a campanha Amigos do Corpo, que incentiva pessoas físicas a destinarem, até 6% do imposto a pagar ou a restituir via Lei Rouanet. Em 2000, a Petrobras tornou-se patrocinadora exclusiva do Corpo, cuja manutenção anual custava R$ 15 milhões – R$ 10 milhões a cargo da estatal. Os outros R$ 5 milhões vinham de apresentações e de turnês. Com a redução dos recursos repassados pela estatal, o Corpo passou a contar com outros parceiros.

OS CIFRÕES DO SETOR

Maior investidora estatal do país em cultura, a Petrobras “destinou R$ 106,8 milhões para projetos culturais do estado de Minas Gerais” nos últimos 10 anos, de acordo com a Gerência de Comunicação Interna e Imprensa da petroleira. Desse total, R$ 63 milhões foram investidos via Lei Rouanet, e o restante com aportes diretos. “A Petrobras está readequando sua carteira de projetos para 2017 por questões orçamentárias e por ter adotado novas linhas de atuação. A partir deste ano, a companhia foca suas ações de patrocínio cultural em audiovisual, música e artes cênicas”, informa a empresa.

Os grupos Corpo e Galpão figuram entre “os principais projetos de patrocínio da Petrobras” e a eles foi destinada uma boa parte dos recursos de patrocínio aplicados em Minas Gerais. Entre 2007 e 2017, a Petrobras reservou R$ 34,4 milhões para o Corpo e R$ 17,7 milhões para o Galpão. “Além desses dois, destacamos também o patrocínio ao Instituto Inhotim, que começou no ano passado com o valor de R$ 1 milhão”, afirma a gerência da estatal.

No que se refere ao repasse de recursos do Ministério da Cultura (MinC) para o estado, a execução orçamentária tem sido significativamente inferior aos valores previstos nos últimos 10 anos, de acordo com dados da pasta. Em 2008, por exemplo, a Lei Orçamentária Anual (LOA) reservou R$ 12,5 milhões para Minas Gerais, sendo que apenas R$ 4,9 milhões foram de fato executados.

A maior previsão de investimentos do MinC em Minas nesse período ocorreu em 2012 – R$ 16,5 milhões, dos quais R$ 7,5 milhões foram executados. Em 2017, a previsão chegou ao menor valor desde 2008 (R$ 5,4 milhões). Considerando a tendência de que a execução seja bem menor do que esse total, o retrato da crise está pintado.

Heróis do corte e costura

Grupo Mineiro de Moda em registro de 2002: produção dos eventos era financiada por cotas - Foto: Roberto Rocha/EM - 2/9/02
Em plena década de 1980, Belo Horizonte, literalmente, fervia e o país conhecia muita dessa criatividade em espetáculos criados pelo Grupo Corpo, pelas músicas de Milton Nascimento, pela arquitetura. A moda, no entanto, ainda não se destacava. Não conseguia romper o eixo Rio-São Paulo para mostrar o que estava sendo feito no estado. Um grupo de estilistas reunidos por Renato Loureiro criou então o Grupo Mineiro de Moda (GMM), cujas ideias fervilhantes começaram a dar forma ao que se transformou, ao longo de 15 anos, no mais importante projeto de criação de estilo do estado, com reflexo em todo o país. A história da moda em Minas e a visibilidade de seus estilistas deu um salto e colocou o estado na cena nacional depois da existência do GMM.


Os pioneiros desse processo absolutamente inédito no país foram a Artimanha (hoje Mabel Magalhães), Allegra, Art Man, Bárbara Bela, Comédia, Femme Fatale (depois Eliana Queiróz), Frizon (depois Mônica Torres), Patachou, Pitti (depois Renato Loureiro), Straccio (substituída, mais tarde, pela IBZ) e a Printemps, comandada por Sônia Pinto. Sem o GMM e seu trabalho pioneiro e criativo, a participação de Minas Gerais na história da moda nacional, a partir dos efervescentes anos 1980, praticamente não existiria. O diferencial é que todos os eventos eram bancados pelo próprio GMM, que trouxe para Minas Gerais Regina Guerreiro, então editora da revista Vogue, que assinava a edição de moda dos desfiles, e Paulo Ramalho, nome top da área à época, responsável pela maioria das produções (posteriormente, ele criou e comandou a São Paulo Fashion Week).


Além de se aplicar na escolha dos participantes (nomes escolhidos entre os mais representativos estilistas existentes na época), o GMM revolucionou também a apresentação dos desfiles, que passaram de individuais para coletivos. Além disso, os cenários das apresentações perderam totalmente qualquer ligação com o usual, de desfiles formais em passarelas clássicas, transformando-se em verdadeiros acontecimentos. Para que isso fosse totalmente novo e inusitado, a escolha dos locais de lançamento também foram os mais diversos e inesperados, como o Museu de Arte da Pampulha, o Cabaré Mineiro, o Palácio das Artes (cujo cenário ganhou uma escadaria hollywodiana), a Praça da Estação (as manequins saíam da plataforma de um trem parado nos trilhos da Rede Ferroviária), o Minas Tênis Clube e outros.


O encerramento das atividades do grupo, em 1994, foi realizado no adro da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Foi uma despedida memorável e impactante, com as modelos entrando na passarela “comendo hóstias”, que logo eram jogadas no chão. Paulo Borges (SPFW e Fashion Rio) fez a direção artística. A ousadia do happening causou polêmica, com jornalistas chegando a escrever que o GMM havia profanado o templo, esquecendo-se de que o que se viu foi um desfile-espetáculo, criativo e arrojado, que seria também um modelo para o futuro.


O sucesso dos mineiros incomodava principalmente os cariocas, que perdiam o mercado que já consideravam totalmente conquistado. Uma manifestação dessa inveja aconteceu de forma absolutamente provinciana. No auge de seu sucesso, os mineiros foram convidados a ir ao Rio participar da entrega do Oscar da Moda, que seria realizado no Hotel Intercontinental. Quando todos os membros foram chamados ao palco, receberam a maior vaia da plateia, para constrangimento geral. Na época, circulou o boato de que quem comandou a manifestação foi uma grife de calçados, imaginem só. Nada foi tão evidente do sucesso dos mineiros quanto essa manifestação pública de desagrado.

 

A força da coletividade

 

As empresas que formavam o GMM eram de pequeno porte, sobressaindo-se pela criatividade, bom gosto e qualidade das coleções apresentadas. O dinheiro usado para pagar as despesas dos eventos era cotizado mensalmente entre elas. Em algumas estações, optava-se pelo lançamento das coleções nos showrooms das marcas. Mas, tanto nessas ocasiões como nas dos desfiles, os principais editores de moda dos jornais e revistas eram recebidos, no aeroporto da Pampulha, com carros e motoristas à disposição para percorrer todos os endereços pelo tempo que ficassem na cidade. Ponto importante é que os jornalistas ficavam livres para visitar os showrooms de outras marcas mineiras importantes, que não pertenciam à associação. Essa generosidade foi, sem dúvida, importante para a divulgação da moda made in Minas nos outros estados.
Outro fator importante foi a contribuição que o GMM deu a setores afins, entre eles a arquitetura. Com a crise da construção civil, na década de 1980, diversos arquitetos de Belo Horizonte se voltaram para a arquitetura de interiores. Vários deles se projetaram assinando showrooms e lojas dos integrantes da associação. Vale a pena ser citada também a ebulição que os seus lançamentos provocavam em Belo Horizonte, movimentando tanto o setor hoteleiro quanto a gastronomia.


Curioso da história do GMM é que ele foi se diluindo aos poucos, por causa do crescimento da concorrência de outros setores de estilo. Considerados – e realmente sendo – criadores de uma elite, os participantes passaram a enfrentar a abertura dos canais de importados e do aperfeiçoamento dos concorrentes. Os formadores do GMM ensinaram à moda mineira que ocupar lugar importante no cenário nacional não tinha nada a ver com “copismo”. E que, para ter um lugar importante no segmento, era necessário sair das produções de fundo de quintal e chegar a ocupar papéis formais na sequência de produção de vestuário e acessórios.


É claro que os altos e baixos da economia do país também influenciaram o fechamento de várias grifes. Algumas delas ainda tentaram continuar o ciclo de qualidade, como Mabel Magalhães, Renato Loureiro, Eliana Queiroz e Bárbara Bela (a única marca que sobrevive até hoje, mas que, atualmente, é produzida em São Paulo). O caminho foi a abertura de butiques vizinhas em shoppings menores, que funcionaram algum tempo antes de encerrar definitivamente a produção, como acaba de ocorrer com a Mabel Magalhães.


A última homenagem ao GMM foi realizada no Centro de Referência da Moda, da Fundação Municipal de Cultura, em comemoração aos 35 anos de sua criação. A mostra Grupo Mineiro de Moda #a vanguarda dos anos 80 foi aberta em setembro de 2015, teve produção da Supernova Promoções e Marketing, com curadoria de Renato Loureiro, e projeto expográfico de Pedro Loureiro. Enfatizou, através da moda, que Minas criou uma forma de expressão própria e consolidou sua identidade cultural. A valorização regional no design tornou-se fundamental para a compreensão das características e hábitos da cultura mineira.