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Presépio do Pipiripau será reaberto após cinco anos fechado

No processo de restauração foram descobertos materiais insólitos e engenharia sofisticada na obra

Ana Clara Brant
As 45 cenas e 580 figuras que compõem o presépio foram radiografadas para manter fidelidade máxima ao trabalho - Foto: Tati Motta/Divulgação

Os carpinteiros reocuparão seus postos de trabalho, assim como o pescador vai voltar à beira do riacho, o trovão vai voltar a ecoar, os sinos da igreja soarão de novo, os bois pastarão, a procissão seguirá pelas ruas e os músicos tocarão suas canções. E mais do que isso, a figura principal, Jesus Cristo, vai ressurgir. As cenas e os personagens de uma das obras de arte mais queridas de Belo Horizonte ganharam vida novamente após minuciosa restauração de cinco anos. Na próxima quarta-feira, dia 26, o Presépio do Pipiripau – que funciona no Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG (MHNJB), no Santa Inês, na Região Leste da capital – retoma suas atividades. Ao longo de mais de um século, a criação do artesão mineiro Raimundo Machado (1894-1988) agora está de volta mais moderno, sustentável, porém, sem perder sua essência.


Coordenador-geral do projeto de restauração, o professor da Escola de Belas-Artes Fabrício Fernandino revela que todo o processo começou há 12 anos e que a reforma completa sempre foi uma das prioridades da universidade. “Ele foi instalado e construído ao longo de 82 anos e o Raimundo sempre fazia manutenção preventiva. Mas uma restauração completa é a primeira vez. É um sistema de transmissão fabuloso, em que foram utilizados os mais diversos tipos de materiais como argila, papel machê, conchas, latas, tecidos e algodão. E tudo isso sofre deterioração ao longo das décadas. Só para se ter uma ideia, a madeira que o sustenta estava destruída em 90% por cupins”, informa.


Foram feitos estudos e mapeamento em vídeos e fotografias das 45 cenas que mobilizam as mais de 580 figuras do Pipiripau. Fabrício explica que cada cena e boneco do presépio foi desmembrado para se ter uma análise completa do que precisava ser feito e, claro, buscando sempre respeitar a originalidade dessa obra única

. “Não é uma restauração simples. Por ser tratar de uma instalação bem complexa e que é mantida por um engenhoso maquinário – composto por barbante, carretéis de linha, polias, mecanismos de relógio, radiola e gramofone –, isso era necessário. A gente tinha que construir a memória documental do presépio de que gerou um documento de 700 páginas disponível nos formatos impresso e eletrônico”, frisa.


Coordenadora técnica da restauração do presépio e especialista em restauração pelo Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis UFMG (Cecor/UFMG), Thaís Carvalho conheceu a fundo os bastidores dessa engrenagem criada por Raimundo Machado. Ela relata que se impressionou com a variedade dos materiais. “A própria concepção do Pipiripau já é surpreendente. É fascinante pensar que o Raimundo ainda criança pegou um Menino Jesus e o colocou em uma caixinha de sapatos forrada de musgos e cabelos de milho e no decorrer dos anos, de maneira intuitiva, foi acrescentando e modificando com todo tipo de coisa. Além dos materiais vistos a olho nu, descobrimos coisas maravilhosas, como tubos de pasta de dente na estrutura de bonecos, conchinhas minúsculas que formam os olhos de alguns animais, penas de pássaros, garra de caranguejo e até cabelo humano”, conta.


A professora Bethânia Reis Veloso, coordenadora-geral da restauração e diretora do Cecor, ressalta que Raimundo já utilizava uma técnica no início do século 20 que hoje é muito difundida, a reciclagem. “Sua genialidade é surreal. Na época, ele soube aproveitar vários materiais que teriam ido para o lixo e os transformou em arte. Quando desmontamos o presépio e trouxemos as figuras aqui para a sede do Cecor, no câmpus, passamos cada peça no
raio X e verificamos que todas tinham uma estrutura metálica para se sustentar

. É curioso como o Raimundo sabia das potencialidades de cada objeto que empregou na confecção do presépio e a funcionalidade de cada coisa”, salienta. “Todo o material usado na restauração foi compatível com o original e todos os processos tiveram a aprovação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), já que o presépio é tombado”, comenta.

OBRA DIVINA Thaís Carvalho lembra que a todo momento os profissionais da restauração eram cobrados pela volta do Pipiripau, mas que para o trabalho ficar benfeito, não adiantava ter pressa. “Após analisar minuciosamente o estado do Pipiripau, chegamos à conclusão de que foi a intervenção divina que o manteve funcionando durante todo esse tempo, porque com a madeira totalmente danificada, e nunca tendo passado por uma reforma completa, é só Deus mesmo”, acredita.


Responsável pelo funcionamento e manutenção preventiva do Presépio do Pipiripau, Carlos Alves Santos, o Carlinhos, trabalha no Museu de História Natural desde os 16 anos – hoje está com 47 – e não via a hora de ver esse tesouro funcionando novamente. “O Pipiripau é o coração desse museu e um símbolo de BH. Eu cheguei a conhecer o seu Raimundo e entrei no lugar do Manoel, que o substituiu quando ele morreu. Tenho um orgulho danado de fazer parte dessa história”, destaca. A obra, que contou com recursos da UFMG e do Instituto Unimed, reuniu cerca de 100 pessoas.

 

O médico Samuel Flam, diretor-presidente do Instituto, diz que a empresa decidiu investrir no projeto do restauro por saber da importância dele para a comunidade. "O presépio faz parte da história e da memória dos belo-horizontinos. Devolver o Piripipau para BH é de extrema relevância porque nos faz retornar ao passado e desperta em todos nós aquele sonho de menino que o Raimundo teve. Todas voltam um pouco a ser criança com a magia dessa verdadeira obra de arte", assegura Flam.

 

 

Bisavô de Anitta

 

A solenidade de reinauguração do Presépio na quarta (27), às 10h, no Museu de História Natural da UFMG no Santa Inês, vai contar com a presença de autoridades e terá a participação do cantor Maurício Tizumba, que fará performance com a música Três Reis. A Universidade também convidou familiares de Raimundo Machado, incluindo sua bisneta famosa, a cantora Anitta. Por meio de sua assessoria, a artista carioca disse que não poderá vir por conta de compromissos já marcados anteriormente mas deu uma depoimento sobre Raimundo e sua obra ao Estado de Minas: "Fico muito orgulhosa pelo meu bisavô ter participado dessa obra magnífica e ter conseguido mostrar seu trabalho artístico para tantas pessoas. Sinto como se tivesse um pedacinho de mim e da minha família em Minas. O presépio é lindo e deve ser visitado", declarou.

 

O criador

 

Raimundo Machado é filho de um casal que veio de Diamantina (Vale do Jequitinhonha), para a capital em busca de oportunidades. Ele nasceu em um ranchinho de sapé à beira da estrada de ferro onde seu pai havia se empregado, em Matozinhos. Quando chegou em BH, a família se instalou na Colônia Américo Werneck, região que, hoje, compreende os bairros Horto, Sagrada Família, Floresta e Santa Tereza, e que era conhecida no início do século 20 pelo nome de Pipiripau. O presépio começou a ser construído em 1906, quando Raimundo tinha 12 anos e trazia apenas um menino Jesus numa caixinha de sapatos. Ao longo do tempo, outros elementos foram incorporados. Em 1927, a obra foi descoberta pela imprensa. O então jornalista Carlos Drummond de Andrade, sob o pseudônimo de Antônio Chrispim, escreve o poema Pipiripau que traz os seguintes versos: "Meus olhos mineiros namoram o Presépio e dizem alegremente: mas que bonito!" Na década de 1960, Raimundo aposenta-se na Imprensa Oficial (onde ingressou em 1927) e continua trabalhando na montagem do presépio em um galpão montado no quintal da sua casa, na Sagrada Família. Na mesma época, é criado o Pipiripin, a versão miniatura do Pipiripau. Em 1976, o presépio é transferido para o Museu de História Natural da UFMG, que o adquiriu formalmente em 1983. Seu Raimundo continuou oferecendo manutenção e supervisão à sua obra até falecer em 1988, aos 93 anos.