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Projeto 'Letra em Cena' traz a BH o escritor Silviano Santiago para interpretar e mostrar a atualidade da obra de Machado de Assis

Há leitores que não conseguem descrever o prazer da leitura de Dom Casmurro, Memórias póstumas de Brás Cubas, Esaú e Jacó ou O alienista. São clássicos da literatura brasileira, mas muita gente teme se aproximar do universo de Machado de Assis (1839-1908), seja pela dificuldade de enfrentar a linguagem do século 19 ou pelo desafio de decifrar narrativas que dialogam com o leitor, trazendo digressões e colocando-o diante de questões difíceis, como a clássica “Capitu traiu Bentinho?”.

O escritor Silviano Santiago estará em BH - Foto: Maria Tereza Correia/EM/DA Press
Para mostrar o quanto vale a pena caminhar pela obra machadiana, o escritor, professor e ensaísta Silviano Santiago participa do projeto Letra em cena – Como ler... Machado de Assis, que será realizado hoje no Centro Cultural Minas Tênis Clube, em BH. Trechos de livros do autor, um dos mais importantes da língua portuguesa, serão lidos pelo ator Rodolfo Vaz.

Fascinado por Machado, Rodolfo era adolescente quando leu Dom Casmurro pela primeira vez. Depois, voltou ao romance inúmeras vezes. Uma das últimas foi quando trabalhou como assistente de direção de atores na minissérie Capitu, da TV Globo, a convite do diretor Luiz Fernando Carvalho. Vaz ajudou Michel Melamed a compor o personagem Bentinho. “Contagiei o Michel com teatralidade e fisicalidade.
Depois de três meses de imersão, foi ele quem me contagiou”, revela.

Para Rodolfo Vaz, a obra machadiana é cada vez mais atual, observando que, no final do século 19, o escritor trabalhava com questões pertinentes ao século 21. “Tem um mundo ali dentro: ciúme, desconfiança, um narrador irônico, um narrador não confiável. Não sabemos se devemos acreditar ou não”, diz o ator, encantado pela narrativa do velho casmurro sobre seu primeiro amor.

“A memória é muito fantasiosa. No auge da maturidade, o velho casmurro traça a vida toda. Escobar era o amigo presente. Aí, a flecha do ciúme inverte tudo: vem a ira, a raiva e o deboche”, diz Vaz.

Curador do projeto Letra em cena, o jornalista e escritor José Eduardo Gonçalves destaca o caráter universal da obra de Machado de Assis. “Ele foi um observador ferino da vida social e urbana do Rio de Janeiro e do Brasil na virada do século 19 para o 20”, diz.

Nascido no morro, filho de mãe branca e pai mestiço, Machado se tornou um intelectual respeitado em sua época.
“Foi o fundador da Academia Brasileira de Letras e obteve reconhecimento em vida. Morreu como grande escritor. Os textos de Machado são muito saborosos, os contos são fabulosos. Ele tem sutileza, um subtexto. Profundo conhecedor da alma humana, faz um grande painel das vaidades, traições e desejos”, afirma Gonçalves. O curador ressalta a maneira como o autor dialoga com o leitor, além de lançar mão de digressões para introduzir questões pertinentes à trama.

O Letra em cena surgiu como proposta de aproximar o público da literatura clássica brasileira. “Pensamos em uma forma de apresentar autores e obras clássicas de modo que as pessoas saiam motivadas a lê-los”, explica Gonçalves. Em seu segundo ano, o projeto dobrou o número de eventos: de quatro na primeira edição para oito.

“Convidamos um especialista para abrir a porta do universo do autor”, resume José Eduardo Gonçalves.
Machado é o segundo escritor cuja obra foi abordada este ano. O primeiro foi Fernando Sabino, com palestra de Humberto Werneck e leitura de textos a cargo do ator Arildo de Barros. “O Letra em cena ajuda a aproximar as obras do tempo de hoje, mostra por que elas merecem ser lidas e relidas. Queremos demonstrar que os livros são uma boa companhia”, conclui Gonçalves.

 

 

TRÊS PERGUNTAS PARA....SILVIANO SANTIAGO

Escritor, professor e ensaísta

 

 

 

1 - O senhor pretende apresentar o panorama da obra de Machado de Assis ou vai se concentrar em um livro em especial?
O ideal é que se aborde um tema conhecido do grande público, trazendo alguma colaboração que possa ser dada. A partir das abordagens clássicas, tentar algo que seja novo. Vou trabalhar a relação amorosa em Machado de Assis. Não em um único romance. Tenho dados concretos. No ano de sua morte, Machado pediu a uma amiga da esposa, Carolina, que queimasse cartas, tudo que ela havia deixado. Machado deixou esse mistério.

É um pouco como Kafka (1883-1924), que pediu a um amigo que queimasse toda a sua obra. Outro mistério é o casamento de uma portuguesa de boa classe social com um mulato, quando ainda havia escravidão.

2 - O senhor vai abordar a relação entre Bentinho e Capitu?
Meu interesse é pelas relações de amor e casamento na obra de maneira sistêmica. Temos em Machado a figura da viúva, da mulher que amou uma vez. Tudo se complica se o segundo marido, pretendente, for ciumento. Esse é um dos interesses. Você pode ler sobre a relação de Capitu e Bentinho querendo saber se ela traiu ou não. Não é isso o que me interessa. Quero ver o sistema. Interesso-me pela forma de escrever, a questão da retórica. Por que escrever na primeira pessoa? Madame Bovary (lançado por Gustave Flaubert em 1857) é escrito na terceira pessoa.
O leitor tem certeza de que ela traiu o marido. Se você me conta a história de uma traição, é uma coisa. Só terei o que você pensa sobre ele. Interessa-me a maneira como Machado cria o mistério. Ele poderia ter como propósito mostrar como as mulheres são infiéis ou poderia falar da tendência que os homens têm de achar que as mulheres são infiéis. São formas muito diferentes. Hoje temos nome para isso: machismo.

3 - O senhor lançou o romance Machado (Companhia das Letras), em que narra os últimos anos de vida do escritor...
Os últimos cinco anos de vida de Machado trazem um problema que me interessa: olhar para determinado momento de vida de um autor que tem um caráter exemplar. Momento quando várias situações que percorreram a vida do indivíduo estouram. Você cria uma leitura particular de alguns momentos de valor simbólico, alegórico, para conhecer a vida. O romance é para isso: fazer uma grande revelação. Um momento apocalíptico que me interessa e não a proposta de costurar a história pouco a pouco, desde o nascimento. Falo da epilepsia. É com a idade que toda doença estoura.Temos poucos estudos sobre a questão da doença naquela época. Hoje as pessoas revelam, mas é difícil ter acesso ao prontuário médico no século 19. Tenho acesso a cartas e documentos de caráter pessoal. Ele se tratou com Miguel Couto, médico que também cuidou de Carolina (mulher de Machado) até a morte.

 

 

 

 

LETRA EM CENA COMO LER...

Tema: Machado de Assis. Palestrante: Silviano Santiago. Leitura de texto: Rodolfo Vaz. Hoje, às 19h. Café do Centro Cultural Minas Tênis Clube–, Rua da Bahia, 2.244, Lourdes. Inscrições gratuitas no site Sympla

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