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Em 'Sociofobia', César Rendueles questiona transformações tecnológicas

Filósofo afirma que eles apenas reproduzem a lógica mercantilista

Pablo Pires Fernandes
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Primeira obra do filósofo espanhol César Rendueles publicada no Brasil, Sociofobia: mudança política na era da utopia digital é uma análise destoante a respeito da chamada revolução tecnológica causada pelo surgimento dos meios digitais e da expansão da comunicação. Para ele, as novas tecnologias escondem ou mascaram as mesmas estruturas vigentes, em que o mercado ganha papel central nas instituições e o consumismo permeia todas as relações sociais. “A tecnologia dá um viés excitante, dinâmico e inovador às relações sociais que, no fundo, são muito consensuais e minimizam os problemas”, afirma em entrevista ao Pensar. 

Professor de teoria sociológica da Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia da Universidade Complutense de Madri, Rendueles aponta que a internet e os smatphones criaram o mito de que o alcance da tecnologia implica mais democracia e participação dos indivíduos na esfera política. “A tecnologia não vai acelerar a mudança política emancipatória, não vai revolucionar a educação”, diz. E defende a necessidade de mobilização social para que transformações mais essenciais sejam possíveis. Para ele, inclusive, se bem empregada e defender valores historicamente constituídos, a tecnologia pode se tornar uma poderosa aliada.  

No livro, você afirma que a tecnologia reproduz elementos da lógica capitalista, mercantilista e consumista. Qual é impacto das novas tecnologias para a política? 
Em primeiro lugar, temos supervalorizado a influência das tecnologias na esfera política. As mídias tradicionais, como a televisão, continuam sendo as fontes de informação preferidas pelos cidadãos. É verdade que as coisas estão mudando, mas muito mais lentamente do que dá a entender a retórica da revolução digital. Em segundo lugar, o efeito da tecnologia sobre a própria prática política é muito ambíguo
. Os teóricos da ciberdemocracia dizem que a internet produz novas formas de cidadania, mas a verdade é que, até o momento, tem produzido simulacros de participação. As miragens digitais escondem que a deterioração das democracias não tem a ver com as dificuldades técnicas para intervir no debate público, mas com a perda de soberania por causa da mercantilização e do poder das grandes corporações.

Você faz uma crítica ao que chama de ciberfetichismo e da ideia de que a tecnologia pode servir como meio de emancipação. Quais são os principais elementos dessa crítica?
Minha opinião é que devemos inverter a perspectiva. A tecnologia não vai acelerar a mudança política emancipatória. O que ocorre é o oposto. São as grandes transformações sociais que podem descobrir usos da tecnologia que hoje nos parecem inimagináveis. A tecnologia não vai revolucionar a educação, como geralmente é dito. É o contrário. Precisamos impulsionar grandes transformações educativas, como projetos igualitários de uma educação pública inovadora e ambiciosa, para descobrir usos pedagógicos da tecnologia, que hoje sequer suspeitamos. Talvez, em uma sociedade mais democrática, igualitária e livre, os smartphones deixem de ser pequenas televisões, nas quais se compartilham pornografia e vídeos bonitinhos, e nos ajudem a viver melhor.

Quais os impactos da tecnologia em termos cognitivos?
Nossas estruturas cognitivas foram estabelecidas ao longo de milhares de anos de história evolutiva
. Isso afeta a nossa interação com os aparelhos tecnológicos e, portanto, mostra que a mais avançada tecnologia não é, necessariamente, a mais recente. Por exemplo, o livro tradicional é uma ferramenta incrivelmente sofisticada que, em boa medida, não foi superada. Por outro lado, muitos produtos tecnológicos de última geração são sucatas supérfluas. Sobretudo, deveríamos deixar de lado o quanto antes o mito dos chamados nativos digitais, que é uma fantasia que está destruindo a infância de muitas crianças. Nossos filhos de 4 anos sabem usar tablets não por que tenham se socializado em um meio digitalizado, mas porque os tablets foram projetados para que uma criança de 4 anos saiba usá-los. Por isso, não são exatamente uma ferramenta que ajuda a desenvolver a capacidade de concentração e abstração ou a resolução de problemas complexos.

Como a tecnologia transforma a relação de coletividade e individualismo, dois conceitos importantes em seu livro?

Não acredito que a tecnologia mude de fato a relação entre as duas instâncias. Nas últimas três décadas, as sociedades ocidentais têm experimentado um forte processo de fragmentação e individualização. Esse desmembramento social é um dos efeitos mais perniciosos do aumento da desigualdade econômica e está associado a muitos problemas que sofremos, como o aumento da delinquência ou dos problemas psiquiátricos. Os meios de comunicação não remediam esse isolamento, só nos tornam mais indiferentes. São como uma ortopedia digital que nos proporciona um simulacro de vínculo social. Um pouco como o Prozac, que não torna você mais feliz, mas faz com que os problemas sejam mais toleráveis.

Você afirma que o consumismo arrasa a possibilidade de reconciliação com as forças antropológicas profundas. Pode explicar qual é esse conceito de forças antropológicas e essa oposição?
O consumismo não consiste simplesmente em ficar comprando constantemente, mas reside no fato de estruturar seus projetos de vida em torno do mercado. O consumismo transforma nossa identidade pessoal, a maneira com a qual vemos a nós mesmos, em uma sucessão de escolhas, cuja única coerência é que tenham sido feitas por mim. Uma série de preferências em relação às quais posso me contradizer, se quiser, sem que ninguém me recrimine por isso. Antes, eu gostava de roupas coloridas; agora, de roupas escuras; antes, de corrida e agora, de ioga... Por isso, esse consumismo é incompatível com o compromisso, com esse tipo de norma que nos liga aos outros e não opera segundo a lógica da preferência. Ninguém “prefere” se levantar à noite para preparar uma mamadeira para seu filho. Creio que esse tipo de compromisso que não nos foi imposto, mas também não é exatamente livre, é central em nossa personalidade, e qualquer projeto de emancipação tem que dar conta dele. O apoio mútuo e o cuidado com os outros são uma parte importante da natureza humana e, portanto, de nossas possibilidades de autorrealização. Vivemos em sociedades em que essa realidade antropológica foi completamente marginalizada. E isso é uma fonte de mal-estar social imensa.

Você aponta para a centralidade que o mercado ocupa na sociedade contemporânea. Essa lógica nos afeta?
O mercado é uma instituição que existe em muitas culturas. Mas o normal era que ele ocupasse um lugar marginal nos processos de subsistência. O mercado costumava ser, literalmente, um lugar e só funcionava em determinados momentos: os dias de feira. Em nossa sociedade, o mercado acabou subjugando todas as instituições sociais e determinando os limites de nossos projetos coletivos. É por isso que não há saídas individuais. Para desafiar o sistema mercantil, precisamos de projetos políticos ambiciosos. Nesse sentido, o Estado tem desempenhado um papel ambivalente. Às vezes, tem ajudado a criar instituições públicas “desmercantilizadoras”. Mas, em outros momentos, os Estados foram cúmplices muito ativos dos processos de mercantilização. Privatizaram, reduziram o poder de barganha da classe trabalhadora, incentivaram a especulação, criaram estruturas fiscais retrógradas...

Como vê a possibilidade de colaboração propiciada pela internet?

Atualmente, a internet está ajudando as grandes empresas a parasitar a cooperação social. É um mecanismo de extrativismo social brutal. Companhias como Uber ou Airbnb são verdadeiros vampiros empresariais de nossa capacidade de nos auto-organizar e trabalhar juntos. Mas, claro, esta não é a única possibilidade. A internet não faz senão exagerar a lógica social dominante. Em um contexto político de cooperativismo igualitário, poderia servir para promover uma cooperação libertadora.

Como vê atualmente o uso do copyleft e as tentativas de grandes corporações de defender o copyright?
Ultimamente, fala-se muito de violações dos direitos autorais e de pirataria. A verdade é que as grandes empresas foram as primeiras a atacar a propriedade intelectual tradicional, que se baseava em um sistema de compensação dos interesses de autores, mediadores e público. O movimento de copyleft surgiu para restaurar esse equilíbrio. O que ocorreu é que alguns setores ligados ao neoliberalismo não levaram em conta a condição de precariedade trabalhista de muitos criadores e de pequenos intermediários. Acho que o movimento em favor do copyleft precisa se aliar a estratégias sindicais e intervenções públicas que possam lhe dar uma dimensão social que, atualmente, ele não tem.

Você tem se dedicado a rever a obra de Marx. Qual é a importância de se recuperar a tradição marxista na sociedade atual?
Não me identifico muito com o marxismo acadêmico. Não acho tão importante ler os textos originais de Marx que, muitas vezes, são difíceis e complexos. Mas, ao mesmo tempo, parece-me inquestionável que há que algo em sua obra que continua a nos provocar, mais de um século depois. A razão é que Marx não se limitou a fazer uma condenação moral do capitalismo como se fosse uma nova forma de servidão, embora, às vezes, ele possa ser pior do que algumas formas de servidão. Em vez disso, tentou explicar como em nossas sociedades pode surgir uma desigualdade sistemática e extrema, mesmo em um contexto político de liberdade individual e respeito à legalidade. Por um lado, essa tensão entre a desigualdade material e a ideologia política esconde os mecanismos de exploração. Mas, por outro, essa inconsistência pode também se tornar um fator de grande mobilização.

SOCIOFOBIA: MUDANÇA POLÍTICA NA ERA DA UTOPIA DIGITAL

De César Rendueles
Edições Sesc 
São Paulo
204 páginas
R$ 50