De toda forma, fui ao Sesc Palladium, na rua Rio de Janeiro no Centro de Belo Horizonte, para conferir se alguém embarcaria nessa viagem. De cara encontrei um monte de envelopes azuis, pendurados por barbantes no teto. Muitos com escritos. Parece que as pessoas têm o que contar, mesmo em tempo de Facebook e Whatsapp – modernidades, que tenho certeza que você gostaria, usadas para as pessoas se comunicarem entre si. Eu, como você sabe, prefiro escrever cartas a mão. A letra cursiva tem seu charme. Você mesmo deveria se dedicar à caligrafia. Quem sabe não melhoraria essa letra. Andreza falou de você. Disse que discorda de seus versos
Para me provar que tem razão, ela me apresentou o Oscar Capucho. Um rapaz muito bem-apessoado de trinta e poucos anos, 33 para ser exata. Além de escrever cartas, ele lê as escritas por outras pessoas em voz alta. As pessoas têm feito essa maluquice de ler poemas em voz alta. Quis logo engatar uma conversa com ele. Não são todos os dias que encontramos pessoas radiantes. Você gostaria muito de conhecê-lo. É um rapaz imaginativo. Também é artista: ator e bailarino. Essa história de escrever cartas mexeu profundamente com ele: remexeu nos diários antigos, resgatou memórias e, pasme você!, anda por aí dizendo que não temos que nos ruborescer para dizer “eu te amo”. “Qual o problema em expressar os sentimentos?”, questionou-me.
Álvaro, você já pensou em qual é a cor do amor? Para Oscar é o azul. “O amor é tranquilo, fluído. O amor é bom. É como a água.” Naquele dia, ele vestia o amor. Estava com uma bela camisa azul. Daria um texto lindo falar sobre as cores e o que elas representam – mas talvez você ache ridículo. Para Oscar, o verde tem cheiro. Cheiro de mato.Para ele, o vermelho é paixão! Se você defende que as cartas de amor são ridículas, o que pensa das cartas de apaixonados? Certamente, quando escreveu seus versos deve ter feito a diferenciação entre amor e paixão, não é mesmo?
No tempo em que estive lá na exposição, muita gente parou para escrever à máquina. Fiquei bem curiosa para ler. Pedi a Oscar que lesse uma das cartas em braile para mim: ele leu as linhas escritas por um homem de 59 anos que ficou cego já adulto. Nossa é impressionante poder ler com a ponta dos dedos. Nessa exposição, tem muitas cartas escritas em braile.
Andreza, a artista que acha que cartas de amor não são ridículas, teve a ideia de fazer a exposição É só uma carta de amor em 2011. Ela queria escrever, mas não queria entregar a ninguém. Ideia maluca. Mas parece que deu certo. A moça viajou para Blumenau, em Santa Catarina, a capital de São Paulo e até em Santiago no Chile, propondo para as pessoas que escrevam. Numa dessas viagens, conheceu um homem que acabara de sair da prisão e leu uma carta de amor. Quando escreveu “as cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas”, você duvida da existência do amor. A Andreza não duvida. “Enquanto procurava na vida a existência do amor, nunca encontrei. Era uma procura incessante. Encontrava o ciúme, a paixão. Quando parei de procurar entendi que o amor é fluído. O amor é.” Para ela, o amor não tem avesso.
Despeço-me ainda sem saber se as cartas de amor são ridículas. Talvez, sejam. Mas ainda assim quis lhe escrever.
Márcia Maria Cruz
Exposição É Só Uma Carta de Amor, de Andreza Coutinho, até 2 de abril das 9h às 21h, no Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro). Aberta ao público
Sabrina Sedlmayer**
“No poema "Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa", o heterônimo mais vanguardista criado por Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, faz um autorretrato precioso da sua personalidade. Futurista, melancólico, angustiado, auto-irônico, experimentou a língua portuguesa como nenhum outro da famosa "galáxia heteronímica". Em seus versos, com acento absurdamente moderno, assobia, chia, repica, martela, faz perder as palavras na busca incessante por sons nunca antes evocados.
Descentrado, fragmentado e errante, trouxe as marcas do capitalismo, as máquinas e o ritmo urbano para dentro da sua matéria poética. Prosaico e ao mesmo tempo filosófico, Álvaro de Campos é plural e sentiu tudo de todas as maneiras. No livro intitulado Quanto a mim, eu: Pessoa e Borges, que publiquei em Portugal em 2004, friso como ao questionar o conceito de sujeito, Pessoa colocou em xeque também o conceito de autoria: passa a não ser um lugar seguro, atribuído a um singular sujeito. Pela heteronímia, a autoria torna-se um lugar vicário, perfeito para exercícios de embuste e de fingimento.
O anagrama do sobrenome do poeta norte-americano Walt WHITMAN, do qual Campos era admirador confesso, é a questão central também da poesia do heterônimo: "With the man". Apaixonado pelas odes do poeta dos versos livres e da Revolução Americana, levou às últimas consequências "a questão do sujeito", questionando o lugar centrado e uno atribuído ao "eu" na Idade Moderna. Destronou a razão do lugar sedimentado pelo cartesianismo (Cogito ergo sum) e nos poemas mais bem elaborados, como o célebre "Tabacaria", se perguntou quem sou eu, demonstrando como o indivíduo definitivamente não é "indiviso". Em seu sobrenome também uma pista preciosa: Pessoa, persona, máscara.”
**Autora de Pessoa e Borges: quanto a mim, eu. Lisboa: Editora Vendaval, 2004. Professora da Faculdade de Letras da UFMG
**Autora de Pessoa e Borges: quanto a mim, eu. Lisboa: Editora Vendaval, 2004. Professora da Faculdade de Letras da UFMG