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Berger - (1926-2017) Contra o cinismo e o elitismo

O crítico de arte John Berger, o escritor Ricardo Piglia e o filósofo Zygmunt Bauman, três grandes nomes da cultura mortos neste começo de 2017, deixaram legados fundamentais para uma melhor compreensão das relações humanas na sociedade contemporânea

Rodrigo Moura

O crítico britânico John Berger na sala de sua casa, em Paris, em janeiro de 2016 - Foto: Jacob Berger/AFP


Armado de um estilete, o crítico de arte John Berger recorta a figura de Vênus da tela de Sandro Botticelli Vênus e Marte, do acervo da National Gallery de Londres. A cena, já clássica, abre o primeiro dos quatro episódios de Ways of seeing (Modos de ver), sua não menos clássica série para a BBC, transmitida pela primeira vez em 1972 e hoje disponível na íntegra no YouTube. 

Dialogando diretamente com as ideias de Walter Benjamin no ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o ponto para Berger era claro. Fazer com que o público leigo, sentado em casa diante da televisão, entendesse que sua experiência com a obra de arte é definida pela reprodução e pelos meios que permitem nosso acesso a ela. Por isso, o gesto iconoclasta ainda que postiço. Obviamente, a tela estripada tratava-se de uma reprodução. Mas ao destacar a figura de Vênus, Berger argumenta, aquela imagem se transforma em algo diferente – um efeito que a imagem da televisão também produz sobre as coisas. A própria figura do escritor era subliminarmente usada para demonstrar a tese. Na abertura do programa, seu rosto aparecia filmado no visor de uma câmera.

Morto na semana passada aos 90 anos, Berger foi uma figura importante na militância de um ofício cada vez mais em desuso, o da crítica de arte. Formado pela nova esquerda britânica, sua missão era se contrapor ao elitismo e ao cinismo na relação das classes dominantes com a arte. E uma das instituições contra as quais ele se levantou no exercício de sua crítica foi a própria voz autoritária e mistificadora da linguagem do especialista, aquilo que identificava como o elemento “falso”. 

Falando pausadamente contra o fundo neutro do chroma-key, num sutil gesto de distanciamento brechtiano, Berger desmontava o aparato armado em torno dos objetos de valor, lembrando que as reproduções tornam seus sentidos ambíguos. “Não quero sugerir que não haja nada para experimentar diante de obras de arte originais além de um senso de reverência por elas terem sobrevivido, serem genuínas e terem um valor absurdo
. Muito mais é possível. Mas apenas se a arte for despida do falso mistério e da falsa religiosidade que a cerca. Essa religiosidade, habitualmente ligada ao valor financeiro, mas sempre evocada em nome da cultura e da civilização, é de fato o que substitui aquilo que as pinturas perdem quando a câmera as torna reprodutíveis”. Esse era o escritor John Berger e seu poder de análise e síntese. Mesmo assim, é difícil imaginar um discurso como esse na televisão hoje.

Se o primeiro episódio da série tratava da reprodução, nos episódios seguintes Berger aprofundava seu escrutínio da tradição europeia da pintura a óleo, dirigindo sua análise para o uso da nu e seu machismo decorrente (“as figuras nuas não estão nuas como elas são, mas como as vemos”) e para as conexões entre arte e imagem publicitária. 

Meu episódio preferido da série é o terceiro, em que Berger enfoca as relações entre objeto de arte e mercadoria. Sua visão básica sobre o assunto era que a pintura a óleo, a partir de um certo momento na história (um momento que podemos identificar com a ascensão da burguesia), serve para celebrar e dar concretude à riqueza. Quando um burguês encomenda e compra uma pintura, ele compra também a aparência das coisas que aquela pintura representa – daí a opulência de retratos e naturezas-mortas, na origem da pintura de gênero. As pinturas passam a representar tesouros, e se tornar tesouros em si mesmas. “Galerias de arte são como palácios, mas também são como bancos. Quando fecham de noite, têm que ser vigiadas.” A consequência desse entendimento é colocar em xeque a própria missão civilizadora da arte europeia, da qual extraímos um Berger descolonizado: “Implícita na ascensão da cultura cristã-europeia está a destruição de outras culturas”, ele diz ao fazer a leitura do quadro Os embaixadores (1533), de Holbein. 

Além do ensaio, Berger dedicou boa parte de sua produção literária ao romance, entendendo sua prática como a de um contador de histórias – algo que podemos estender generosamente à sua própria posição como crítico e divulgador de ideias
. Vários de seus livros de ficção estão publicados no Brasil, o que oferece um campo fértil para seu leitor, mas boa parte de sua crítica se mantém inédita. A antologia de ensaios About looking, em que seu apetite cultural se volta para temas tão diversos quanto animais no zoológico, a escultura de Giacometti, fotografias de guerra e a diferença entre pintores “primitivos” e profissionais seriam um bom ponto de partida para a tradução de sua crítica.

A política de Berger é articulada do ponto de vista de uma agenda de intervenção no real e nunca no panfletarismo estéril. Sua voz militante é da maior pertinência na atual conjuntura. Num mundo que vai dar posse a um fascista autodeclarado como o homem mais poderoso deste mesmo mundo, artistas e ativistas culturais chamam por greve. Esse gesto encabeçado por nomes como Richard Serra, Cindy Sherman e Joan Jonas visa desnaturalizar a chegada de Trump ao poder – o mesmo que Berger fez décadas atrás com as pinturas canônicas. Entender as implicações desses fenômenos, e reconhecer que eles vêm sendo gerados há tempos, é nossa tarefa nesse aqui agora. Ler, ver e ouvir John Berger é mais necessário do que nunca.

 

Editor, crítico de arte e curador