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Stephen Collins lança graphic novel, 'A gigantesca barba do mal'

Autor critica a sociedade atual ao abordar a xenofobia e a espetacularização pela mídia, com lirismo e pleno domínio dos recursos da linguagem da HQ

Pablo Pires Fernandes

Em 'A gigantesca barba do mal', personagens temem a desordem. - Foto: Fotos Editora Nemo/Reprodução do livro 'A gigantesca barba do mal'

Há muitos casos em que a primeira obra de uma carreira artística, seja criação individual ou coletiva, é a que se torna definitiva. Há outros casos, todavia, em que a excelência do trabalho é alcançada com depuração e maturidade, com tempo. O quadrinista britânico Stephen Collins tem alguns anos de experiência com tiras e cartuns, publicados em veículos britânicos e americanos. Mas é estreante no formato de romance em quadrinhos, chamado de graphic novel.


Em 2013, publicou A gigantesca barba do mal, que só agora chega ao Brasil pelo selo Nemo, da Editora Autêntica. O trabalho é uma obra-prima dos quadrinhos. Como é jovem, espera-se que o autor não se encaixe na primeira categoria e siga nos brindando com outras pérolas.

A gigantesca barba do mal é uma fábula contemporânea. Descreve uma sociedade idealizada, mas verossímil e não distante da realidade atual. Na ilha chamada Aqui, tudo é extremamente ordenado, asseado e funciona sob uma lógica estritamente ''normal''. Seus habitantes não conhecem outro mundo e, além da imensidão do mar, fica Lá – em inglês, a palavra here (aqui) está contida na palavra there (lá).

Lugar tão temido quanto desconhecido, é cercado por lendas e rumores. Lá ''era a desordem, era o caos, era mau'', embora ninguém tivesse ido até lá. No entanto, mesmo sem ser mencionada, a noção da existência de Lá paira sobre os habitantes de Aqui como uma ameaça à ''normalidade'' de suas vidas

. A mera possibilidade de alguma espécie de bagunça é fonte de temor, inclusive para Dave.

SONHOS CAÓTICOS

Para lidar com esse medo e com os sonhos caóticos que o assombram de vez em quando, Dave desenha o que vê diante de sua janela. A prática, feita com regularidade e disciplina, afasta seus temores e o ajuda a manter o sentido de ordem e sua rotina. Dave é careca e, mais do que isso, seus únicos pelos no corpo são as sobrancelhas e um único fio renitente debaixo do nariz. Afora o fio de barba, que teima em despontar. Dave leva sua vida de burocrata em uma corporação dentro dos padrões dos moradores de Aqui.

Certo dia, os gráficos e previsões que Dave meticulosamente monitora diariamente no trabalho saem do padrão. Em seguida, seu único fio de cabelo começa a crescer inesperadamente e dá origem a uma barba. Rapidamente, a barba vai lhe tomando o rosto. Os pelos se expandem, causam repugnância a todos que o cercam. Dave foge. De maneira inexplicável, a barba cresce e toma conta de sua casa, de sua rua

. Desse momento em diante, a estimada organização de Aqui começa a desmoronar. A desenfreada barba de Dave institui  a entropia que desestabiliza todo o sistema.

Essa ruptura criada pelo autor, recorrendo ao fantástico, confere à narrativa uma dimensão metafórica. A sutileza da abordagem, porém, não deixa qualquer dúvida de que a visão do quadrinista a respeito da sociedade atual é cáustica e até sombria. Suas metáforas são mordazes, expressas ora com ironia, ora com pessimismo. A mídia e a espetacularização, a manipulação de discursos e da ''realidade'' também são objetos de questionamento nesse trabalho.

Em A gigantesca barba do mal, o cerne da narrativa é a desestabilização daquela sociedade a partir de um elemento inesperado. Ali, as pessoas não sabem lidar com o diferente, com o novo, com o imprevisto. O personagem, confinado em sua casa, é hostilizado pela população, explorado pela mídia e julgado pelas autoridades. Cultuado e arraigado, o medo do outro – mesmo sem saber se esse outro representa perigo de fato – é o gatilho para a reação de repúdio e negação. Diante da iminente ameaça à segurança pública (ou à segurança nacional), o medo acaba por induzir à rejeição do desconhecido. Lá e também aqui.

Ao expor esse dilema de maneira fabular, sutil e elegantemente, Stephen Collins critica a sociedade que teme a diferença, xenófoba, que não é capaz de olhar para além de suas próprias certezas e que reproduz preconceitos. O brilho do autor, porém, não se resume à criação de uma boa metáfora. O quadrinista consegue aliar forma e conteúdo de maneira surpreendente, ressaltando seus conceitos por meio de um amplo repertório da linguagem gráfica (e específica) das histórias em quadrinhos.

Um dos mais particulares elementos da gramática dos quadrinhos é a relação entre texto e imagem. Collins faz uso desse recurso de maneira pouco comum, introduzindo placas e sinais gráficos como parte do texto, colocando pequenas frases entre os quadros, o que cria pausa na leitura e certo distanciamento entre a escrita e os desenhos.

MONTAGEM

O ritmo das imagens e as composições de página, outro elemento específico das HQs, são explorados com habilidade singular. Faz oposições entre desenhos semelhantes, mas que, em quadros diferentes, estabelece passagem de tempo. Outro recurso próprio dessa linguagem, rarissimamente utilizado, é a passagem entre as páginas. O último quadro da página ímpar, que antecede a virada de página, pressupõe um gesto do leitor e uma passagem de tempo. Em vários momentos, Collins consegue criar relações interessantes entre esse último quadro e o primeiro da página seguinte, remetendo ao princípio eisensteiniano de montagem.

Mesmo sem empregar cores, o autor maneja bem as nuances entre o preto e o branco. Seu emprego de vários tons de cinza é capaz de criar atmosferas e acrescentar dramaticidade às cenas e sequências. Desenhos de página inteira (ou até duplas) se alternam com outros com mais de 15 quadros, além de variada disposição da verticalidade e horizontalidade na composição, o que evidencia um pleno domínio da nona arte e seus recursos.

A gigantesca barba do mal explora um campo fértil possibilitado pelos quadrinhos, ao mesclar o cotidiano e o fantástico. Assim, é capaz de estabelecer identificação direta e simples com o leitor e, ao mesmo tempo, introduzir elementos na narrativa para algo fora da lógica ''natural''. É inevitável relacionar esta graphic novel ao realismo fantástico da literatura latino-americana, mas, sobretudo, ao realismo mágico do mineiro Murilo Rubião.

Collins foi capaz de aliar uma narrativa lírica a uma sagaz crítica da sociedade contemporânea. Com lirismo, ele mostra que a ideia de ordem (e um suposto progresso) nem sempre faz sentido. A entropia é inevitável, não existe sistema perfeito. Portanto, saímos dessa fábula cientes de que precisamos de um pouco de caos em nossas vidas.

A GIGANTESCA BARBA DO MAL
>> De Stephen Collins
>> Nemo, 240 págs., R$ 39,80