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Em livro, Francisco Brennand fala de sua vida, da arte e acerta 'algumas contas'

Obra de quatro volumes organizada por sobrinha-neta do artista plástico, Marianna Brennand Fortes, reúne recordações dos diários do ilustre pernambucano

Isabelle Barros

Francisco Brennand construiu obras marcadas por seres fantásticos - Foto: Paulo Paiva/divulgação

Recife – A Oficina Francisco Brennand, no Bairro da Várzea, se ergue, imponente, como um portal para o mítico nas bordas da cidade do Recife, vizinho de um braço do Rio Capibaribe tomado pelo verde.

Seu dono e senhor, o artista plástico Francisco Brennand, de 89 anos, guarda-o desde 1971 com o empenho que o próprio nome do local deixa entrever. A etimologia da palavra oficina diz respeito a “lugar de trabalho”, “lugar do fazer”, algo que ele aplica todos os dias à sua arte, seja na pintura ou na cerâmica. Desta vez, no entanto, não é o talento pictórico que chama a atenção, mas o lançamento de seus diários, reunindo trechos comentados de sua vida e pensatas sobre variados temas, principalmente artísticos. Os quatro volumes são divididos por datas.

A erudição de Brennand e sua inclinação para a escrita já são conhecidos por quem acompanha sua obra. Quem se aventurou a pesquisar e organizar décadas de manuscritos foi uma de suas sobrinhas-netas, Marianna Brennand Fortes, que lançou um curta e um longa-metragem sobre o artista. Ela abriu uma editora, a Inquietude, que viabilizou a publicação de 2 mil exemplares da obra, com cerca de 2 mil páginas.

“Foi um trabalho muito intenso desde quando o li pela primeira vez e decidi que contaria a história dele por meio dos escritos. Meu filme traz isso.
É o diário de um artista e de um homem que reflete sobre si mesmo. Quem escreve é um apaixonado por literatura, artes plásticas, cinema. Respeitei totalmente o que ele produziu. Só organizei e criei uma diagramação para facilitar a leitura”.

O primeiro volume do livro condensa escritos realizados de 1949 a 1979. Nesse período, Brennand viaja a Paris com sua primeira mulher, Deborah, e aprofunda sua vocação artística, visitando ateliês, descobrindo a cerâmica como forma de expressão e decidindo erigir sua oficina a partir das ruínas da olaria fundada por seu pai, onde passou a infância.

No entanto, o artista queimou as partes escritas entre 1963, quando assumiu a Secretaria da Casa Civil do primeiro mandato do governador Miguel Arraes, e 1971, quando abriu sua oficina. Os “excessivos queixumes” do período, segundo ele, foram os culpados pela destruição.

Oficina, no Bairro da Várzea, é imenso museu a céu aberto - Foto: Oficina Brennand/divulgação

De acordo com Marianna, os três volumes do diário, chamados de O nome do livro – mais um adicional, intitulado O nome do outro, com conteúdo produzido entre 2007 e 2013 –, foram divididos de forma a oferecer uma visão multifacetada do artista. “Originalmente, haveria apenas dois volumes, mas mudamos de ideia. De 1949 a 1979, vemos o Brennand jovem, pintando e falando sobre seu trabalho. No segundo volume, de 1980 a 1989, há o artista ‘louco’, reconstruindo o espaço que foi do pai e se dedicando à pintura e à escultura. Já o terceiro livro apresenta um homem maduro, que voltou a escrever intensamente e a se aprofundar na atividade literária. O quarto volume traz uma reflexão sobre sua trajetória de uma forma muito particular, com a criação de um alterego, Nonato ou Renato. Ele tem mais liberdade para esclarecer determinados pontos de sua vida e o volume começa a partir de sua suposta morte. Esse revisitar da vida dá a ele a sensação de que precisa se reinventar como um novo Brennand.”


DIÁRIO DE FRANCISCO BRENNAND
•  De Francisco Brennand
•  Editora Inquietude
•  Quatro volumes
•  R$ 100


TRECHO

“Se um diário fosse apenas uma exaustiva (e variada) narração de ‘fatos diversos’, melhor seria ler os jornais diariamente.
Nesse gênero os jornais são imbatíveis, têm de tudo e ainda dão o troco, isto é, jogam com moedas falsas.

De outro lado, um diário não pode ser um compêndio de filosofia. Pergunta-se qual o mais fácil e qual o mais difícil?

Pelo menos num diário o autor pode desabusadamente afirmar: ‘Hoje não fiz nada. Tampouco pensei em nada. Nem ao menos lavei as mãos, mas para compensar lavei os pés. Como não pensei em nada, esqueci de almoçar e de jantar, aliás, hábito esse muito difundido em várias religiões sob o argumento de que ‘o jejum faz bem à saúde e é uma provação bem recebida por diferentes deuses’.”




ENTREVISTA

 

Como você se sente sendo objeto de atenção pública, especialmente com o lançamento de seus diários?
Eu me habituei a receber pessoas aqui na Oficina. As pessoas costumam dizer que sou recluso, mas não sou, absolutamente. Apenas não apareço no mundo social do Recife, mas em Paris era a mesma coisa. Passava a maior parte do tempo no meu ateliê, trabalhando. Saía para ir aos museus. Vivo aqui dentro dessa propriedade, no Recife, desde que nasci.

Sou rodeado de visitantes, que me obrigam a conversar e a conviver. No entanto, é lastimável que as conversas estejam diminuindo consideravelmente. Noto que alguns visitantes me fazem perguntas a respeito do conjunto de obras da Oficina, mas, curiosamente, se você se alonga, eles recuam, ficam amedrontados e vão embora sem nenhuma cerimônia. Devem pensar que sou louco. Não é normal que uma pessoa fale mais de dois minutos a respeito de um determinado assunto, e como eles me pedem opiniões, ocorre um processo de emulação. A fala pode se desencadear a despeito de você, por mexer com mecanismos ancestrais de comunicação.

Há muitas percepções equivocadas a respeito de sua obra e de sua trajetória?
Não me lembro se foi (o escritor alemão Rainer Maria) Rilke quem disse que a fama é muito mais um conjunto de desentendimentos a respeito de uma pessoa do que de entendimentos. Você é famoso porque as pessoas lhe atribuem defeitos que você não tem. O fato de não me movimentar muito me deu tempo de fazer outras coisas, como exercer a minha profissão, que exige um trabalho repetido, diário e sem trégua. Estou aqui comemorando 45 anos de trabalho dentro desta velha fábrica, que estava em ruínas, foi reformada por mim e poderia ser, inclusive, um local muito mais difundido do que já é. É um lugar eleito por cada uma das pessoas que vêm aqui. Ele já não me pertence.

A exposição As névoas de Caspar, atualmente em cartaz na Oficina, é homenagem sua ao pintor alemão Caspar David Friedrich. Qual o motivo disso?

Não é novidade um artista homenagear o outro. Como estou encerrando minha carreira de pintor, não queria deixar essa oportunidade em branco. Na verdade, estou falando a palavra encerrar desde os 60 anos. Tenho a sensação de que estou me despedindo, mas entre os meus defeitos devo ser também hipocondríaco. No entanto, sinto falências evidentes que não sentia há 20 anos. Voltando a Friedrich, os temas dos quadros são montanhas, névoas e a solidão das pessoas. Tenho uma grande admiração pelo pintor e o citava em meu diário desde os anos 1980. Não é uma improvisação. As figuras humanas retratadas em seus quadros estão de frente para a paisagem, para o mistério. A natureza não é amiga nem inimiga de ninguém. Ela é indiferente a nosso destino, assim como é indiferente a uma pulga. Não sou uma pessoa otimista diante do mundo.

Você lançou quatro volumes de seus diários, cuja publicação era aguardada por anos. Por que isso ocorreu agora?

Se não fizesse agora, seria um diário póstumo (risos). Em todo caso, há uma quantidade enorme de diários publicados postumamente. Tive a sorte de minha sobrinha-neta, Marianna Brennand, se interessar pela publicação desses diários com enorme força de vontade. Ela se empenhou por cinco anos e foi bem-sucedida depois de muito trabalho. Não é fácil encontrar patrocinadores e os volumes foram editados na Companhia Editora de Pernambuco em uma edição caprichada. Percorri os quatro volumes e encontrei apenas um erro, um nome próprio. Há uma quantidade enorme de nomes nos quatro volumes, o índice onomástico é quase um romance, com citações de autores, filósofos e pensadores. Esse trabalho é um diário de artista, com conceituações a respeito de arte, considerações relativas a minhas obras, enfim, o drama de qualquer artista durante a criação. Pensava no meu diário como um livro absolutamente comum, mas a atitude fervorosa de Marianna em me homenagear e a minha idade me fizeram deixar de pensar que seria um exagero tê-lo editado em capa dura.

A determinação com a qual você escreve demonstra seu apreço pela palavra. Há coisas que apenas elas conseguem expressar?
Evidentemente, a escrita é bem mais artifical do que a fala. Você tem a obrigação, quando escreve, de utilizar muitas vezes 10 ou 15 palavras à procura de uma síntese perfeita. Os escritores, mesmo depois de várias edições de seus livros, voltam a corrigi-los, a fazer revisões. Acho que nada está perfeito ou terminado. (O pintor francês) Cézanne dizia que não existiam quadros terminados, mas abandonados. Esses dois temas serviriam como material para um romance: um pintor que inadvertidamente pinta um mesmo quadro a vida inteira sem perceber, e só depois de morto as pessoas vêm descobrir que todas as telas dele eram absolutamente iguais. Outro tema já foi explorado por Balzac: a luta para encontrar a pureza da forma, e sem perceber ele está destruindo a obra, em vez de aprimorá-la. Esse é o drama de todo artista. Ele nunca deixa de olhar o que os outros fazem ou já fizeram. É como se fosse um quadro só, pintado desde as cavernas. Até hoje não se explica por que o homem primitivo, mesmo em condições as mais adversas, escondido nas cavernas, encontrou tempo de pintar. Isso está dentro do coração humano, não é somente um ofício.

Como, então, essas palavras encontram seu diário?
Penso num ditado popular – “emprenhar pelos ouvidos” –, o que é o meu caso. O que vejo na televisão, algo dito de passagem, uma história em quadrinhos, um nome próprio, o nome de uma mulher fica nos meus ouvidos e, então, vou aos meus cadernos escrever. Faço isso porque sou obrigado a fazer, não tenho como escapar. Cheguei a dizer que sou completamente escravizado pelas palavras. Se uma pessoa quiser me confundir, basta ficar em silêncio. Fico totalmente nas mãos dela. Se ela falar, sou capaz de apreender o que ela está pensando. Se ficar em silêncio, não compreendo.

Alguns anos não estão no diário. Por quê?

Talvez preferisse chamar de anuário. Não respeito datas. Não sou sistemático. Tem falhas. Queimei os escritos do período entre 1963 e 1971. Eram cadernos que não me interessavam. Excessivas lamúrias, queixas, problemas. Achei desnecessário mantê-los comigo. Não era literário. O diário traz exortações, anotações que podem ser úteis a estudantes de arte, ou os que ainda vão viajar, com uma quantidade enorme de citações de artistas de todo tipo. Cineastas, atores, poetas, pintores, escultores, modelos que nem nomeava. Vi que não precisava nomear as modelos porque elas não me davam nomes verdadeiros. Mas tinha uma italiana, Mara, que se identificava com seu nome verdadeiro. Ela passou oito anos aqui. Eu a conheci quando ela tinha 18 anos. Lia meus livros, conhecia música erudita, de forma que ela passou por uma espécie de universidade por meio da convivência comigo.

No último volume de seus diários, há referências a um certo Mestre Brennand. Quem é ele?
Depois de uma certa idade, é comum os artistas serem chamados de mestres. Mestre Brennand, Mestre Abelardo da Hora… É uma maneira de você dar um tratamento respeitoso a um artista que, às vezes, você nem respeita. Neste volume, já não sou eu quem fala, é um personagem, Nonato, ou Renato. Ele me trata como Mestre Brennand e o quarto volume não tem mais nada a ver com o diário. É uma história. Poderia ter dito que é muito mal-alinhavada, pois não sou romancista. Escrevi dessa forma porque tinha alguns acertos de contas a fazer e temas que gostaria de esclarecer.

Quais acertos de contas?
Há tantas interpretações cavilosas a respeito da minha obra, como, por exemplo, dizer que ela é obscena ou afirmar que a escultura do Marco Zero tem uma forma fálica. Se eu fizer um poste, um obelisco, uma chaminé, a intenção é fazer um gigantesco falo? Por que aquilo tem que ser um falo? Me convidaram para participar de uma homenagem aos 500 anos do Descobrimento do Brasil e quis que a forma vegetal fosse representada em sua imponente verticalidade. As pessoas esqueceram que os conquistadores saíram das grandes cidades, feitas em linha reta, e descobriram as grandes florestas, cheias de curvas. A mata atlântica era vigorosa e chegava até a beira da praia. Foi isso o que os portugueses encontraram. Para o olho dos que estavam vindo de fora, tudo era diferente e passou a ser mítico, essa era a minha intenção e se relaciona com minha obra. Quando entreguei o primeiro desenho (reproduzido na primeira página do quarto volume dos diários) ao arquiteto responsável, eu o tinha feito de caneta, sem nenhuma pretensão. Os arquitetos têm um desenho basicamente estruturado em estereótipos urbanos. Ele transformou meu desenho em algo despojado de qualquer interpretação orgânica que queria dar e o tornou um foguete. Era um grande cilindro que terminava com uma ogiva. Se alguém escrevesse “Nasa” nele, daria a impressão de um foguete a ser lançado às alturas. Abordo essa questão em um trecho do quarto volume do diário. A parte superior da coluna é uma flor descoberta por Roberto Burle Marx. Aqui no Recife, a chamamos de flor de cera, e ela cria uma protuberância muito mal traduzida. Essa obra entrou no anedotário popular e meu nome é totalmente desrespeitado. De qualquer forma, é um lugar de visitação. Me encomendaram a torre e mais oito peças para o Parque das Esculturas. Em vez disso, fiz 90 e doei à prefeitura, doação essa aceita apenas recentemente. Há uma predisposição para aquele espaço não ser cuidado porque ele não é aceso. Seria um espetáculo se o local fosse iluminado. Quando se colocam arquibancadas no Marco Zero, eclipsa-se um fundo natural, pois não é comum você encontrar um parque de esculturas dentro do Oceano Atlântico.

Desde a criação da Oficina Francisco Brennand, em 1971, esse lugar foi transfigurado por você. Como esse local transformou a sua obra?

Nasci aqui. Esse lugar foi erigido não só por mim, mas por alguns familiares que, tanto quanto eu, o elegeram como centro do mundo. O centro do mundo é o centro do nosso espírito. Estou aqui há 45 anos, quase meio século, mais tempo do que meu pai, que ficou aqui por 38 anos e deixou a olaria para fazer porcelanas. Além de tudo, descobri muito cedo que o Bairro da Várzea está ligado à história da Restauração Pernambucana. Expulsamos os holandeses e foi a partir daí que o Brasil começou a ter um endereço certo. Essa região é um solo sagrado. Wittgenstein dizia que a arquitetura glorifica, logo, só pode haver arquitetura onde há algo a glorificar. Então, existe algo que justifica esse templo, essa cidadela, esse sítio com uma mitologia própria, como um local de reflexão para as novas gerações. Ele vai ficar para a cidade do Recife. É fruto de um trabalho árduo, desde a época de meu pai e de todos os operários que trabalharam aqui, desde quando era uma empresa que fabricava telhas e tijolos. Meu pai contratou Abelardo da Hora, que trabalhou dois anos fazendo jarras, pratos. Meu pai era encantado com isso. Acredito que as peças criadas aqui são sacralizadas nas suas próprias intenções. O sagrado não está ligado apenas ao cristianismo. O símbolo que preside a Oficina é o de Oxóssi. Como brasileiro, estou perfeitamente integrado ao sincretismo religioso. Sou católico à minha maneira, e essa percepção inclui Oxóssi. Não sou candomblecista, mas o incluo como um dos meus protetores, por quem nutro grande devoção. Acho a história dele gloriosa. Ele anda à procura de uma caça e sabe que não vai encontrar. É a busca do Absoluto. É a procura por Deus, é a procura dos físicos, é a ilusão de encontrar uma nova habitação em outros planetas. Quanto aos diários, só é preciso saber que tudo começou com uma viagem. Comecei a escrever desde o navio, indo a Paris e lendo, no caminho, Guerra e paz, de Tolstói. Ali, tive as primeiras experiências em uma cidade mítica.

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