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Pesquisadora e romancista Ana Miranda lança livro sobre Xica da Silva

Em 'Xica da Silva - A cinderela negra', autora constrói uma ficção sobre a vida da escrava alforriada, ressaltando as múltiplas visões sobre sua personalidade com pano de fundo histórico

Ângela Faria
Ana Miranda assina os desenhos feitos para o livro e que ressaltam as diversas facetas de Xica da Silva - Foto: Ana Miranda/Reprodução
Entre a lenda e a história, Ana Miranda redesenha um mito: Xica da Silva. Não é à toa que seu novo livro, dedicado à “cinderela negra” de Diamantina, traz ilustrações de próprio punho. Como sugere o jogo de linhas que marcam os desenhos de Ana, temos aqui um labirinto. A mineira Xica da Silva ainda está por ser decifrada.

Morta há 220 anos, a ex-escrava se desdobra em várias. Inspirou livros, blockbuster do cineasta Cacá Diegues, peças de teatro, novela da extinta TV Manchete e escolas de samba. À sua maneira, enfrentou o racismo em pleno século 18. “Ela encarna a mulher que se libertou da pobreza, do desprezo racial e social, da opressão política e da senzala”, observa Ana Miranda em seu livro Xica da Silva – A cinderela negra.

Enquanto Ana romancista dá voz e emoção à personagem, a pesquisadora Ana situa o leitor no Brasil setecentista, brindando-o com impressionante riqueza de informações sobre a vida social, cultural e política na capitania das Minas Gerais e em Lisboa.

A nova biografia de Xica revela com minúcias o universo afro-mineiro setecentista, assim como desvenda o mundo dos senhores. Um dos méritos do livro é justamente nos explicar a complexidade das relações naquela sociedade formada por brancos, mulatos e pretos.
Nas Minas Gerais, filhos de senhores e cativas, apesar do “sangue impuro”, ocupavam cargos importantes; ex-mucamas comandavam clãs, quando não os próprios negócios; ex-escravos detinham os próprios plantéis negros; padres formavam famílias ao lado de forras.

O olhar da romancista aliado ao apuro da pesquisadora enriquece a aula de história, mas com o cuidado de delimitar claramente as narrativas. A ficção surge em letras diferenciadas, em itálico, deixando bem claro: aquela cinderela negra é apenas uma das Xicas – a de Ana Miranda.

Tarimbada em mesclar história e ficção, a autora cearense, de 65 anos, já lançou Boca de inferno (livro inspirado na vida do poeta Gregório de Matos), O retrato do rei (sobre a Guerra dos Emboabas), A última quimera (sobre o poeta Augusto dos Anjos) e Semíramis (sobre o escritor José de Alencar).

Ana constrói a sua Francisca nos conduzindo pelo caleidoscópio de Xicas criadas por vários autores. O primeiro foi Joaquim Felício dos Santos, em Memórias do Distrito Diamantino, livro lançado 72 anos depois da morte da ex-escrava, descrita como negra perversa. Há a Xica voluntariosa, caprichosa e dominadora que subjugava a elite da provinciana Diamantina; a concubina cruel e ciumenta, capaz de cortar os seios das escravas; a mulata devassa que enfeitiçava os homens, transformando o sexo em poder. Mas há também a protetora dos negros, a senhora que apreciava as artes em seu teatro particular, a bela dos versos de Cecilia Meireles em Romanceiro da Inconfidência.

Ana Miranda chama a atenção para a “revolucionária biografia” escrita pela historiadora mineira Junia Ferreira Furtado, lançada há 12 anos. Essa pesquisadora trouxe à luz – com base em documentos – a mãe de família dedicada, caridosa e religiosa. Desmontou estereótipos, contribuindo para desvelar o racismo que sempre acompanhou o imaginário em torno daquela mulher.

E haja imaginário... Em 1917, os restos da mulata foram exumados durante a reforma da Igreja de São Francisco de Assis, em Diamantina. O povo temia a ossada, jogada num canto. Era a Xica assombração. Nos anos 1930, a “famigerada” ressurgia no livro História secreta do Brasil, de Gustavo Barroso; nos anos 1950, sua figura era usada para aterrorizar crianças levadas, a Xica bicho-papão. Em 1965, o romance Chica que manda, de Agripa de Vasconcelos, trazia a mulata ciumenta, mas bondosa com os negros e algoz dos brancos. Em 1958, ela ganhou peça de Antônio Callado, escritor alinhado à esquerda.
Finalmente, em 1976, a ex-escrava conquistou o país na pele da atriz Zezé Motta. O cineasta Cacá Diegues a transformou em deusa negra do sexo – alegre e poderosa defensora dos humildes.

DEMOCRACIA Se há labirintos ainda a percorrer em busca da verdadeira Xica, uma coisa é certa: a saga da ex-escrava que se impôs aos brancos fala – e muito – ao Brasil do século 21. Afinal, essa figura mitológica mineira vem embaralhar outro mito: a nossa tão propalada democracia racial. No início deste ano, aliás, foram presos rapazes responsáveis por ataques racistas à atriz Taís Araújo, que se projetou justamente ao fazer o papel de Xica em novela de grande sucesso exibida há 20 anos pela Rede Manchete.

As mesmas ofensas racistas atingiram as atrizes Cris Vianna e Sheron Menezes, a jornalista Maria Julia Coutinho, a Maju, e a cantora Ludmilla. Diariamente, negros brasileiros enfrentam o preconceito, quando não o ódio, por romper as barreiras da exclusão, ganhando espaço na TV, conquistando cargos importantes e posições de destaque. As últimas palavras do novo livro de Ana Miranda parecem destinadas a todos eles: Xica é inesquecível. Afinal, ela sempre será alguém que sofreu, lutou e conquistou a liberdade.

XICA DA SILVA: A CINDERELA NEGRA
•  De Ana Miranda
•  Editora Record
•  520 páginas
•  R$ 69,90.