Fernanda Young se reencontra com a aspirante a escritora que foi um dia e lança 'Estragos'

Coletânea traz contos escritos a partir de seus 17 anos até 1995

Pedro Antunes/Estadão Conteúdo Estado de Minas

“Não ter desistido da literatura é mesmo algo que devo respeitar na minha trajetória”, avalia Fernanda Young.

Foram necessários 20 anos, 12 livros publicados e o entusiasmo de sua editora, Eugenia Ribas-Vieira, para que ela deixasse a estrutura romanesca de lado e lançasse um livro de contos.

Fernanda Young diz que muitos dos contos de seu livro são "frustradas tentativas de romances" - Foto: PAULO FERREIRA/DIVULGAÇÃO 

Sob o título de Estragos, o volume, que não foi escrito linearmente, traz histórias que datam do período entre 1987 e 1995, antes mesmo de Fernanda publicar Vergonha dos pés, seu primeiro romance. O livro condensa duas “Fernandas”: a jovem aspirante a escritora e a escritora propriamente, que decidiu expor sua imaturidade no ofício, em pouco mais de 200 páginas.

 

A ideia surgiu enquanto ela editava A mão esquerda de Vênus, seu segundo livro de poemas, lançado em maio deste ano. Os contos representam a gênese de uma escritora que se considera incompreendida, conforme afirma na entrevista a seguir ao Estado de Minas, e já se arriscou como roteirista, apresentadora, atriz e modelo. Sobre a passagem do tempo, ela afirma ser grata, principalmente aos seus leitores. Aos 46 anos, afirma ser uma artista que entende a arte como um processo contínuo e conta que trabalha no projeto de uma exposição sobre sua “inesgotável condição de criadora”.

Como chegou à decisão de publicar esses textos que manteve durante tanto tempo inéditos? E como a ‘’autora’’ de hoje enxerga a ‘’aspirante’’ de antes?
Havia apenas um manuscrito desses contos, estava com a minha irmã (Renata Young) há não sei quantos anos.

Enquanto eu editava A mão esquerda de Vênus, pedi que ela me enviasse alguns poemas, pois tenho o costume de escrever e logo mandar para ela. Junto, ela me entregou o manuscrito. Após a publicação de A mão..., mostrei os contos para minha editora, Eugenia (Ribas-Vieira), que gostou bastante. Sempre fui reticente em mostrar meu trabalho anterior ao meu primeiro romance publicado – Vergonha dos pés –, mas ela pediu para que eu fizesse uma leitura em voz alta para ela. Passamos uma tarde lendo. Eugenia sempre foi minha leitora e é mais jovem do que eu. Notei que, para ela, esses textos eram importantes, como leitora de minha obra, era um presente saber sobre minha literatura juvenil. E isso me fez ter carinho por aquela que fui e, é claro, por quem me tornei. Percebo que fui muito corajosa, teimosa e que mantenho bastante disso, ainda. Também há um erotismo que me surpreende.

Por que um nome depreciativo para um livro comemorativo?
Sou muito autodepreciativa, sempre usando um humor ácido a respeito de mim mesma. Isso é ruim. Eu me puno bastante, na verdade. Sou crítica demais.
No entanto, esse título foi uma sugestão da Eugenia, que ela mesma logo refutou, e eu amei. Acho muito perigoso mostrar minha imaturidade, levando em consideração que ainda não fui sequer entendida. Mas o fato é que o título é bom. Foi a primeira vez que aceitei a sugestão de um título. Sou possessiva. E creio que, quando somos jovens, fazemos muitos estragos. Mas o meu público está apto a compreender as possíveis falhas da minha literatura juvenil. Sou muito afortunada em ter leitores legais e leais.

Os seus romances tratam de temas íntimos, abordam um microcosmo muito específico e acabam fazendo uma análise psicológica dos personagens. Como constrói isso? E qual é o lugar disso num mundo cada vez mais centrado no indivíduo?
Sou muito devotada à psicanálise. Tenho consciência de que minha literatura estabelece um diálogo com o mundo psíquico.
Esse mundo eu vasculho em mim e naqueles com quem convivo. Leio muito os grandes escritores psicanalistas. Invento um pouco, mas, no geral, sei do que estou falando. Atualmente, como bem descreveu (o sociólogo polonês Zygmunt) Bauman, vivemos uma sociedade líquida. Tudo muito escorregadio, sem densidade, sem indagações. Uma época de angústia eufórica. Observo e escrevo sobre o que vejo. Para um pensador, é uma época rica de análises, mas eu não sou somente escritora e confesso que acho que são tempos obscuros. A cafonice é comercializada, a burrice é incentivada. Nada de reflexão, nenhuma utopia. Um tempo frouxo.

Um dos contos de Estragos, O comedor de torpedos, fala sobre política e tem um personagem comunista. Qual é o seu posicionamento diante da atual conjuntura política do Brasil?

Sempre fui muito consciente politicamente. Sempre tentei estudar as nossas crises, porque sou muito idealista. Nasci na ditadura e votei pela primeira vez nas eleições que elegeram o Collor. Não votei nele nem no Lula. Nem um nem outro eram confiáveis. Eu tinha 18 anos. Creio que, de lá para cá, as coisas ficaram bem mais complexas, mas estamos mais conscientes. Ando muito triste com o Brasil, muito triste com o que tem sido feito. Não é uma questão de partidos. Não há vencedores nem vencidos. Fomos sacaneados.

A série de contos levanta uma questão: algum deles virou livro autônomo?
Não, muitos foram tentativas. Frustradas tentativas de romances.

Em maio, você lançou seu segundo livro de poesias, A mão esquerda de Vênus. No entanto, sua carreira está estruturada na prosa. De onde vem a vontade de escrever e publicar poesias?
Vem da necessidade de sobreviver ao afogamento. Escrever um poema é um ato de desespero. Sim, creio-me poeta. Há poesia em tudo que faço. Mas nem sempre estou tão desesperada, o que é mesmo um alívio. Tenho muito orgulho dos meus livros de poesia. Mas reconheço que o romance é a minha estrutura.

Você nasceu em Niterói, no Rio de Janeiro, e atualmente mora em São Paulo. Apesar de os contos terem sido escritos quando ainda morava no Rio, eles trazem uma ambiência paulistana. Como surge esse reflexo em sua literatura?

Sou muito paulistana. É o meu lugar no mundo. Sempre quis viver aqui. Mas já vivi em outros lugares, inclusive no Nordeste. Não consigo escrever diante de belas paisagens. A realidade precisa ser “cinza”. Quando está tudo muito bonito, não há o que mudar. Tenho um sítio no Sul de Minas. O lugar mais lindo do mundo. Lá eu só pinto, desenho. Escrever, para mim, vem de uma necessidade de refazer a realidade. Não preciso mexer em nada quando estou na Serra da Mantiqueira.

Como avalia o seu tempo na literatura?
Gosto do tempo. E posso dizer que ele parece gostar de mim. Sou grata por poder publicar. Grata aos meus leitores. Continuo sendo incompreendida, o que, no frigir dos ovos, me parece um bom sinal.

São 20 anos na literatura, um pouco mais na TV e 46 anos de vida. O que mais vem por aí?
Quero lançar em 2017 um novo romance, mas faço faculdade, tenho 4 filhos e o tempo gosta de mim, mas não quer me dar mais algumas horas para os meus dias. Vou insistir, porém. Sou insistente com os meus sonhos.

Estragos
• Autora: Fernanda Young
• Editora: Globo Livros
• Preço sugerido: R$ 44,90

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