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Ricardo Lísias questiona relação entre público e arte em romance

Em 'A vista particular', escritor paulista ambienta no Rio narrativa sobre artista plástico e traficante para falar de realidade e sua representação

Nahima Maciel

- Foto: Fernanda Fiamoncini/Divulgação

O Brasil contemporâneo, com as crises e desajustes que sacudiram o país nos últimos meses, virou fonte do que há de melhor na produção literária recente. A sociedade brasileira é tema de vários livros, entre eles o romance de Ricardo Lísias. A vista particular (Alfaguara), lançado no mês passado, mostra como a ficção brasileira pode reagir rapidamente e com muita qualidade ao cenário social e político do país.

Para José Luiz Passos, escritor e professor de história da literatura brasileira na Universidade da Califórnia, essa reação é um fenômeno recente, especialmente quando se trata de romances que versam sobre política e história contemporânea. “Nos Estados Unidos, isso existe. Na Inglaterra também, o romance histórico é muito importante. Nós não temos. Tenho a impressão de que isso é fruto de uma certa obsessão da literatura brasileira pelo tema da identidade cultural, legado do nosso modernismo. A maior parte das nossas narrativas são sobre indivíduos privados que se contrapõem a uma cultura mais geral, a ideia de uma heroína problemática que navega numa cultura adversa, mas não temos, de fato, uma reflexão sobre o que é a representação política e a crise da democracia”, acredita.

Ricardo Lísias já havia escrito muito sobre São Paulo quando decidiu mudar o foco para o Rio de Janeiro.
A vista particular tem a capital fluminense como cenário e, como protagonista, um artista plástico empenhado em construir uma instalação na qual a favela e seus habitantes são o próprio suporte da obra. José de Arariboia tem essa ideia genuína, complexa e genial de se aproximar do chefe do tráfico de uma típica favela carioca para, juntos, criarem uma obra nunca vista, fruto de pura espontaneidade e sensibilidade.

Performance
Arariboia, que ao final do livro é apenas Arara, não planejou a fama, não calculou cada passo da dança-performance que, depois de filmada pelo traficante e viralizada no YouTube, o projeta para o topo da pirâmide do mercado de arte. Daí para conceber a instalação, que é a própria favela, vai um gesto simples. Obviamente, Araribóia consegue uma projeção midiática e uma repercussão capaz de catapultá-lo para as exposições mais importantes do planeta.

Não se sabe muito bem quais as intenções de Arariboóia, nem que tipo de caráter carrega o artista, mas isso não importa tanto assim. Há algum tempo, Lísias queria explorar as proximidades e distâncias entre a literatura e as artes plásticas. Como o Rio de Janeiro vivia um momento de grande atenção graças à organização das Olimpíadas, Lísias achou que era a hora de escrever sob a perspectiva dessa cidade.

É mais sobre as artes plásticas e menos sobre a literatura que autor reflete em A vista particular. A dificuldade de a sociedade lidar com os símbolos da arte contemporânea é central no romance. Quando a instalação de Arariboia é transportada para um espaço comumente entendido como “da arte”, as fronteiras entre realidade e representação se tornam incompreensíveis para os habitantes do Rio de Janeiro, para os integrantes da obra e para o próprio meio artístico. “Ao contrário de muita gente, admiro bastante muita coisa da arte contemporânea. Dessa forma, não entendo como a arte contemporânea receba tanta resistência por parte do público”, diz.

A vista particular
 De Ricardo Lísias
 Alfaguara
 126 páginas
 R$ 34,90

Quatro perguntas para...

Ricardo Lísias
escritor


Há uma crítica à arte contemporânea e à incapacidade de a sociedade, de forma geral, lidar com os símbolos da arte contemporânea?

Acho que de certa forma sim, sobretudo a segunda parte da pergunta. Ao contrário de muita gente, admiro bastante muita coisa da arte contemporânea. Acho as soluções de Nuno Ramos, Richard Serra, Anselm Kiefer, Joseph Beuys, Tunga e muitos outros bastante interessantes. Dessa forma, não entendo como a arte contemporânea muitas vezes receba tanta resistência por parte do público.

Mesmo a crítica de artes plásticas me parece em alguns momentos alcançar um patamar bastante elevado.

Tem um momento em que o narrador explica que o artista só perde para os atentados em Paris. A ficção tem muito a perder para a realidade?
Tudo a perder, muito infelizmente. As pessoas são escravas dessa tal de realidade e se agarram a ela como se fosse uma boia em meio a uma tormenta. Acho lamentável: a realidade é algo muito pouco atraente, normalmente nos violenta e oprime e, certamente, não é a parte mais interessante da vida. Por que será que o leitor não consegue se esquecer dela?

O Rio de Janeiro é uma cidade surreal? A ficção perde para a realidade no Rio?
Acho que a realidade carioca, bem como a brasileira, é realmente essa. A questão é que as pessoas não querem enxergar, ou talvez já tenham tornado natural o que deveria ser um absurdo. Por fim, talvez já estejamos acostumados à barbárie que nem mesmo a reconheçamos mais.

Na sua opinião, o que a arte pode fazer pela realidade quando esta última se torna surreal?
A arte pode intervir na realidade de muitas maneiras, talvez procurando efeitos que denunciem discursos ocultos, apagados por alguma razão, excluídos de vários espaços por motivos nem sempre muito claros. A arte hoje talvez deva ser mais desagradável que a realidade, para mostrar a que todos estamos submetidos. Ou, de repente, precise ser complexa a ponto de desnudar a simplicidade de muitos dos nossos enganos. Por fim, quem sabe ela possa assustar para demonstrar que a barbárie não é o nosso ambiente ideal.

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