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Estado de Minas

Pensar traz entrevista de Ferreira Gullar dada à série 'A arte de escrever'

O repórter Sérgio de Sá esteve no apartamento do escritor, na Rua Duvivier, em Copacabana, no Rio de Janeiro


09/12/2016 11:07 - atualizado 09/12/2016 11:31

(foto: Ronaldo de Oliveira/C/D.A PRESS - 26/1/1998)

Em fevereiro de 1998, o poeta Ferreira Gullar concedeu uma das mais extensas entrevistas a um jornal brasileiro sobre o seu processo criativo. Foi para a série “A arte de escrever”, publicada pelo Correio Braziliense. O repórter Sérgio de Sá esteve no apartamento do escritor, na Rua Duvivier, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Em homenagem à memória de Gullar, que morreu no último domingo,é reproduzida a íntegra da reportagem.

Se existe poesia, as ruas de São Luís do Maranhão têm culpa. José Ribamar cresceu ali olhando o vento, ouvindo tudo ao redor. Aos 21 anos, ele foi embora. Mas aí já era tarde demais. Os poemas nascem da vida e a vida teve sua origem nessa cidade, em seus jogos de luz e sombra, com seus clarões e relâmpagos. Se fosse outra a fonte, seria também outro o poeta. Seria outra a poesia.

José Ribamar era também Ferreira. José Ribamar Ferreira. Começou a escrever aos 13 anos e assinava Ribamar Ferreira. Um tormento, pois vários conterrâneos tinham o mesmo nome, Ribamar isso, Ribamar aquilo. Um dia, a confusão foi longe demais. Um tal Ribamar Pereira, péssimo poeta, apareceu no jornal como Ribamar Ferreira. O equívoco apressou a decisão. Estava na hora de mudar de nome.

O Gullar foi escolhido do lado materno. Ribamar Ferreira virou, então, Ferreira Gullar. No começo, fazia poesia para a namorada ou para dor de corno. Após uma provação, foi ser poeta em sentido pleno. De uma vez por todas.

Foi assim. Ainda em São Luís, Gullar passou por um sebo e comprou um livro. As páginas, bem, as páginas estavam tomadas por fungos. “A literatura me deu uma sensação desagradável, era um livro que apodrecia e que falava de uma coisa que não tinha nada a ver comigo”, conta. O menino criado em banhos de rio, em corridas através do capinzal, que fazia o diabo nas “manhãs tropicais”, esse menino, agora rapaz, se fez perguntas cruciais.

Será que vale produzir esses objetos que apodrecem? Como? Em que condição vale a pena? Vale a pena, disse a si mesmo, se a poesia mudar as coisas, se for viva, se tiver vida. “Meus poemas podem ter defeitos, mas não são mortos. Eu imprimo a eles um clarão, uma coisa qualquer que a pessoa lê e tem algo a ver com a vida, tem algo gritando ali dentro.”

Gullar se define como regente do alarido que a forma do poema abafa. O alarido: vozes, perfumes, saudades, sofrimentos, mágoas, culpas. E o poema tenta explicar o alarido, vibrando com ele.

Misterioso é que Gullar não goste de barulho, do barulho que vem em quantidade generosa da Rua Duvivier, em Copacabana, Rio de Janeiro.

O poeta hoje consagrado tem um gato de nome simplesmente diminutivo: Gatinho. Se o poeta se afasta por muito tempo, o siamês sente falta. Será que se coloca à janela para ver se lá vem vindo Ferreira Gullar pela Duvivier? Será que tem ideia de que dentro daquele perfil alongado pode estar fervendo um poema?

Sabe-se que Gatinho convive com poesia e já virou versos (“de veludo/ e garras/ silencioso/ cheio de sons”). Ultimamente, deve sentir a paixão que vem desse homem muito magro, capaz de gestos eloquentes, de discursos contundentes.

Ao falar da vida – e isso lhe interessa sobretudo –, Gullar explode. A voz ganha força e intensidade. A VIDA! Até mesmo a morte é feita de vida, porque senão não valeria a pena tanta poesia. “Tenho horror ao sofrimento.” E nenhuma obra de arte é sofrimento, não, nenhuma é sofrimento.

O papel do poeta é transformar dor em alegria poética. É doloroso fazer o poema? Qual nada. “Quando você realiza o poema, é como se aquilo fosse um metal que se transformasse em outro metal, como se minério se transformasse em ouro.” Sim, o poema é alquimia, o poeta, alquimista.

A dor foi transformada em prazer, o mesmo prazer que Gullar sente ao concluir o poema. “Quando termino, estou feliz.” A angústia, essa miserável, aparece antes ou durante. Angústia e prazer caminham juntas no processo de criação poética quando ele tem certeza de que aquele é o caminho da alegria.

Sofrer é não ter poesia para fazer. Ah, isso é que é sofrer. Mas “quando uma onda se alteia no mar...”, compara e ri Gullar. Quando essa onda vem chegando, ela traz a seu lado a felicidade e a esperança de que uma alegria vai nascer: o poema.

O vaivém da conversa aponta a morte no horizonte. Ela ronda o papo como já ronda os últimos poemas. Morte transfigurada. “O problema é inventar a vida. Enquanto a morte não vem, vamos fazer de conta que ela não existe.”

Vamos, então, fazer de conta que é a coisa mais comum do mundo encontrar um homem de 67 anos completamente apaixonado (pela poeta Cláudia Ahimsa, cuja foto se vislumbra ao lado do computador, no escritório abarrotado de livros). Vamos fazer de conta também que ele não é um crítico de arte ilustre. Quem sabe, assim, a expressão poética esboce o lugar de onde vem, ou o não lugar onde se esconde.

Da vida anotada às pressas em um papel qualquer no meio da rua – recibo, talão de cheque – pode surgir o poema. Gullar leva a anotação para casa e passa a limpo, primeiro a mão, depois no computador. Pode parecer fácil, mas não é, “é sempre difícil o poema acontecer”.

Impossível controlar seu nascimento. “O fator que deflagra o processo psicológico da criação é incontrolável.” Talvez uma lembrança e uma palavra. “Já aconteceu de eu acordar, lavar o rosto e, nesse caminho, eu tinha um poema na minha cabeça que era sobre o próprio acordar.” No caso, um mau despertar.

Saio do sono como
de uma batalha
travada em
lugar algum

Na maioria das vezes, Gullar escreve seus poemas sobre o papel, mas pode acontecer de eles serem construídos diretamente no computador. Ainda assim, o poeta faz uma cópia, lê e dá a forma definitiva ao poema. “Preciso olhá-lo espacialmente. É um corpo a corpo mais concreto que no computador.” Na distância e na frieza do computador ele não encontra identificação necessária. Consequentemente, não realiza o poema necessário, como sempre deseja.

Vem a lembrança de que Ferreira Gullar enfrentou algumas batalhas. Depois de ser concreto e liderar o movimento neoconcreto, foi poetar para o povo. Dois anos de Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE) e, segundo ele, de má poesia. “Há um exagero de avaliação da crítica com relação ao que há de político na minha poesia”, diz.

Uma visão marxista, dialética, foi incorporada à poesia depois do engajamento político, não há dúvida. “Mas o poeta não é político, é sempre um homem que questiona o conhecimento e que não pode ter verdades.” Até porque, ao criar uma forma verbal equivalente à experiência, o poeta está, na verdade (na inverdade!), inventando uma mentira.

As mentiras de Ferreira Gullar, cheias de vida, disseram não ao concretismo. Explica-se: “Era um movimento que pretendia realizar o poema de maneira totalmente racional. Não considero que o resultado disso seja bom. A vasta maioria dos poemas concretos não é boa. São artefatos, produtos curiosos, bem bolados.” Nada mais que isso.

Já quando era adepto ao concretismo, Gullar procurava equilíbrio entre a forma e o sentimento, para que fossem evitados o esquematismo, o empobrecimento da expressão. Isso porque, assim como gravou o cantor Fagner:


Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira

O discurso é importante. “As palavras sem o discurso são abstratas. A poesia concreta devia se chamar poesia abstrata.” O autor de A luta corporal busca a palavra de sentido determinado pelo discurso. Quer a poesia que tem concretude. As palavras pera e gato, que tanto frequentam seus versos, aparecem enquadradas, encadeadas. Jamais soltas no ar.

O último livro de poesia de Ferreira Gullar foi publicado em 1987. Depois de Barulhos, o poeta teve a sensação de que não iria escrever mais. “Fiquei um ano inteiro sem fazer nada, sem ter vontade de escrever. Eu pensava na poesia e me dava horror.”

Aos poucos, o “poço de petróleo”, como ele diz, voltou a jorrar. “Um pocinho”, brinca. Uma das razões, ou melhor, uma das emoções para que ele tenha voltado a escrever mais foi o encontro com Cláudia. “Costumo dizer que não tenho vício algum. Sou dependente apenas da paixão”, explica.

Além de São Luís, “a maior influência que recebi”, a cidade do Rio de Janeiro faz parte (importante) das vozes presentes na poesia. Rio vivido desde 1951. Lapa, Catete, Copacabana, Ipanema, Jardim de Alá, Biblioteca Nacional, Praça da Cruz Vermelha, lugares por onde andou e vagabundeou.

Ferreira Gullar é mais poeta, mas não é apenas poeta. Ensaísta, cronista, dramaturgo, tradutor e, depois da publicação, no ano passado, de Cidades inventadas, contista. É responsável por reflexões importantes, como as de vanguarda e subdesenvolvimento. Entretanto, essencialmente poeta: “Não sou ficcionista. Tem gente que acha que é capaz de escrever tudo. Eu já faço coisas demais”.

Escreve também para a televisão – minisséries, adaptações literárias – sem considerar que esteja fazendo arte. “Eu vivo da televisão.” Arte, porém, é outra história. Arte exige elaboração demorada e o processo por um indivíduo. Produção em massa não é arte, por definição de Ferreira Gullar. Está mais para entretenimento.

Poesia? “Poesia não dá camisa para ninguém”, mesmo que esse ninguém seja um dos mais conhecidos poetas brasileiros. De nada adianta. Se tivessem de viver dela, Gullar e seu Gatinho estariam, sem meias verdades, numa favela carioca.

Essa situação seria condizente com a condição da poesia, até mesmo com sua “natureza marginal”, que é qualidade. “Vivemos numa sociedade em que só tem valor o que tem valor no mercado. Então a poesia não tem valor, não vale nada. Por isso ela está à margem desse delírio massificante que transforma tudo em coisa alguma.”

Pois o marginal Ferreira Gullar, que um dia escreveu “tua gengiva igual a tua bucetinha que parecia sorrir entre as folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como uma boca do corpo”, tende a concordar com os críticos que veem uma maneira “gullariana” de dizer as coisas.

“Depois de tanto escrever você acaba encontrando a sua própria maneira.” Toda arte, ensina o poeta ao citar André Malraux, começa como pastiche. Ou, como apontou outro crítico, inicia-se como transfusão de sangue.

Mas o sangue tem de ser o mesmo, senão mata o poeta. O que corre nas veias de Gullar tem vários matizes. Para começar, só lia os maranhenses. De formação parnasiana, passou pelos românticos – Gonçalves Dias, Castro Alves –, chegou aos simbolistas. Depois tomou conhecimento da poesia moderna. Achou Carlos Drummond de Andrade. Mais que um achado, transformação.


“Quando descobri Drummond, senti que tinha descoberto outra coisa”, recorda. E Drummond estranhou-se na mão que escreve o poema... Ainda houve esse contato revelador do significado da poesia ao ler Rilke, Rimbaud, Mallarmé, Elliot, João Cabral de Melo Neto. Além das coisas da vida (por exemplo, as conversas com as mulheres que amou), o “solo verbal” de onde nasce o poema alimenta-se das leituras. “Falo do cheiro das coisas, dos rumores do capim e da água que ouvi em um soneto de Rilke, que não é a água da fonte, é do soneto mesmo.”

Não há lugar certo para fazer surgir o poema (pois o poema é mesmo uma “aparição”). O apartamento tomado pela proximidade dos quadros – Valentim, Goeldi, Samico, Ianelli e alguns do próprio Gullar – é onde a inspiração aporta para ganhar as dimensões de arte, que cumpre o papel de tornar a vida menos chata. E, por falar em artes plásticas, estamos diante de um poeta que inicialmente queria ser pintor. Hoje é dominical, despretensioso e amador.

Poesia-vida, poesia-alegria. Às vezes, felizmente, poucas vezes, a vida perde o sentido e aí Gullar nega radicalmente tudo, “fico anulado, não escrevo, tenho vontade de morrer”. No exílio, entre 1971 e 1977, ele estava sofrendo muito mas tinha de agir. O monumental Poema sujo, chamado de nova Canção do exílio, foi elaborado nessa época. As memórias do exílio, essas foram registradas em Rabo de foguete, a ser lançado brevemente.

“A infelicidade pode provocar poesia. Em excesso, ela te anula”, garante. O triste vazio total é o sofrimento do qual nada brota, um verso sequer.

Se não forem versos, podem até ser frases. E Ferreira Gullar é dono de algumas interessantes, em especial quando observa os usos da língua portuguesa. Ele aprendeu isso no Maranhão, onde se fala “o português mais correto”. São dele os “aforismos da crase”: “A crase não foi feita para humilhar ninguém”. Ou: “Quem tem frase de vidro não joga crase na frase do vizinho”.

Crases à parte, o poeta filho de quitandeiro, sem livros em casa, autor de livros-poemas, nos quais “a elaboração do poema determina a forma do livro e de suas páginas”, o poeta do Maranhão e do Nordeste que enterrou literalmente o Poema enterrado, para o qual se exigia que o corpo do “leitor” descesse a escada que ia dar numa pequena sala no subsolo, o poeta que escreveu peças de teatro buscando a saída para a ditadura, o poeta que usou do instrumento poético para fazer proselitismo político (na fase cordel), o poeta que acredita ter valido a pena sair de São Luís, mesmo sem tê-lo feito verdadeiramente, o poeta.

 

Clarice entrevista o poeta
Em março de 1977, logo depois da publicação de Poema sujo, a escritora Clarice Lispector fez uma entrevista com Ferreira Gullar que foi publicada na revista Fatos e Fotos. “Eu tinha um pouco de medo dele, parecia-me que, com seu extraordinário poder verbal, eu seria aniquilada”, revelou Clarice na abertura do texto. Ela também se declarou “fervente admiradora” de Gullar, “desde os tempos de A luta corporal até esse escandalosamente belíssimo Poema sujo”. A conversa dos dois escritores foi publicada em 2007 no livro Clarice Lispector – Entrevistas (Rocco). Chama a atenção o tom confessional que a escritora imprime ao relatar: “Éramos um pouco distantes um do outro, e eu desconfiava que ele rejeitava a minha ´literatura. Mas o que fazer? Nada, senão continuar a gostar do que ele escrevia e escreve. Nesta entrevista, ele me assegurou que a desconfiança antiga era errada. Aleluia!” A seguir, trechos da entrevista de Clarice com Gullar:


Olhe, Gullar, no Poema sujo você me fez sentir uma criança diante de uma selva ou de um altíssimo monumento. E quando você falou em “noites envenenadas de jasmim” – pois bem, senti-me de volta a Recife, que é a minha terra.


É, suponho que o jasmim é algo muito forte. Assim o senti em Valparaíso, quando tomei um susto em relação ao intenso perfume dessa flor. Também então eu fui transportado de novo à minha infância. Em Lima, perto da casa onde morava havia um muro de onde se debruçava um jasmineiro.

Marques Rebelo me disse uma vez que reescrever era mais simples que escrever. Quanto a mim, Gullar, eu discordo, pois minhas frases já vêm prontas. Em você, como se processa o ato criador? Você reescreve?

Não, só me sento para escrever quando sinto que a coisa está praticamente pronta dentro de mim. Depois que escrevo, faço como você, eventualmente, algumas emendas, mas é só.

Gullar, vou lhe fazer uma pergunta muito difícil que eu mesma não saberia como responder. É o seguinte: como nasce, em você, o poema, a palavra escrita?


Em mim, o poema quase sempre é provocado por um choque emocional qualquer. Por exemplo, quando escrevi o poema sobre o Vietnã, a coisa se deu do seguinte modo: eu acordei, comecei a ler o jornal com suas tremendas notícias sobre a guerra. À porta de minha casa havia uma feira. Quando vi aquelas pessoas se dirigindo para as suas casas, com as cestas carregadas de verduras e frutas, deu-se o choque. Eu pensei: se fosse no Vietnã, aquela senhora poderia encontrar a sua casa em chamas. Pensei: num país em guerra deve ser impossível planejar a vida, marcar férias, ir ao cinema, tudo pode ser desfeito de um momento para outro. É a insegurança total. O choque emocional já por si provoca as palavras, eu em geral não me preocupo em escolhê-las. Elas jorram.

Sua poesia passou por sucessivas etapas, verdadeiras rupturas com as fases anteriores, e há quem diga que seu último poema rompe com tudo o que você fez antes. Como explica isso?

As rupturas são aparentes, ou melhor, de superfície. Sempre fiz literatura como um modo de entender a vida e a mim mesmo. A vida muda, eu mudo, as formas de expressão refletem essas mudanças. O Poema sujo rompe com certa rigidez, a que a própria prática de escrever vai submetendo o escritor, este poema é mais livre, um reencontro consigo mesmo.

O Poema sujo é um poema de exílio?


Não somente. Acredito que a condição de exilado penetra todo o poema e deve ter sido uma de suas motivações. Mas creio que o poema vai além disso – ele é uma tentativa de dizer tudo como se depois dele eu fosse morrer. O que ele significa exatamente, eu não sei.


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