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A fé e a cor de Minas

Exposição homenageia artista plástico romeno que se encantou pelo Brasil

Ocupando duas galerias do Palácio das Artes, 'Marcier 100' revela talento de Emeric Racz Marcier para obra singular entre o humano e o místico

Walter Sebastião
Depois de fugir dos nazistas, Marcier desembarcou no país e viajou por Minas, onde ficou fascinado pelo barroco, que registrou nas telas Ouro Preto, de 1966 - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press

O romeno Emeric Racz Marcier (Cluj, 1916 – Paris, 1990) foi um pintor que, fugindo da ascensão dos nazistas (era judeu, o nome Marcier é pseudônimo), passou pela Itália e Paris até chegar a Portugal, onde amigos artistas sugeriram que viesse para o Brasil.


Em 1940, ele chegou ao país e, em 1942, veio a Minas Gerais fazer reportagem sobre o barroco para a revista O Cruzeiro, ilustrada com desenhos. Impactado com a potência da arte antiga mineira, passou a viver e trabalhar entre o Rio de Janeiro e Barbacena (MG), onde instalou residência e ateliê. Entre 1947 e 1950, começou a trabalhar em obras murais baseadas nessa tradição italiana dos séculos 13 e 14. Por quatro décadas, deu vazão a pinturas singulares no contexto da arte brasileira por somar tragicidade e misticismo.

A exposição Marcier 100 – Emeric Marcier, em cartaz no Palácio das Artes, tem curadoria de Edson Brandão. Reúne 66 pinturas – a mais antiga delas, de 1941, e a mais recente, uma tela inacabada de 1990, ano da morte do artista.

Os trabalhos se dividem em duas grandes seções: Coeli (céu, em latim), na Galeria Genesco Murta, abriga a produção sacra de Marcier, inclusive duas paixões de Cristo completas; Terrae (terra, em latim), na Galeria Arlinda Corrêa Lima, traz paisagens das cidades históricas de Minas, figuras humanas, retratos, autorretratos e nus.



Sagrado

“São os dois mundos em que Marcier transitou: a ambiência humana e o sagrado”, explica o curador. Nos dois casos, está em cena a mesma proposição: uma pintura de tons terrosos contraposta ao interesse em valorizar a cor.

Edson Brandão explica que Coeli tem como atrações obras raras e pouco conhecidas. Nesses quadros, o artista se vale da linguagem religiosa para fazer críticas a ditaduras, em especial no Brasil, mas também na Europa.

Um exemplo é São Sebastião do Rio de Janeiro. No corpo, em vez de flechas, ele tem fios elétricos. Outro é a Pietá atacada por abutres. E há ainda a imagem de um homem garroteado. “Marcier foi, acima de tudo, antifascista. Em sua autobiografia, ele diz que farejava um fascista de longe”, conta o curador. “Marcier não foi artista alheio a seu tempo. Para um homem que conheceu a perseguição devido à etnia, ao sobrenome e saiu da Europa por isso, incomodou ver a ditadura militar brasileira”, analisa Brandão.

Retratos No setor Terrae estão pinturas que revelam uma obsessão: os autorretratos, realizados da juventude à velhice, além de um retrato da esposa e de quatro (dos sete) filhos. Uma curiosidade é a imagem de um armazém, em Santa Teresa (RJ), localizado no prédio da família do escritor mineiro Lúcio Cardoso, um dos integrantes do grupo de intelectuais católicos (como os poetas Murilo Mendes e Jorge de Lima) que incutiu no pintor a visão de mundo mais voltada para a religiosidade.

Na mesma sala estão paisagens, que fizeram a fama de Marcier. “Ele integra o grupo de artistas que consagram a paisagem mineira”, explica o curador.

Para Edson Brandão, a expressividade dos personagens, o tom dramático das imagens e a ótima composição conferem força à pintura de Marcier. A exposição exibe também Pietá, tela de 1952, considerada pelo curador uma “obra de transição”, por mostrar o artista encontrando o seu vocabulário pictórico.

A exposição foi concebida pelo Palácio das Artes como homenagem aos 100 anos de nascimento de Marcier. Traz peças de coleções públicas e privadas, resultado de três meses de pesquisa. Para Brandão, o bom estado das obras se deve à cultura técnica muito apurada do romeno.
“Mesmo sendo um artista extremamente particular e difícil de catalogar, Marcier é um pintor muito significativo do século 20 brasileiro”, enfatiza.



Azul

Edson Brandão conta que, certa vez, Marcier disse que “em Minas, até o azul do céu tem algo trágico”, acrescentando que a biografia do artista leva o nome de Deportado para a vida (2004). Para ele, a afirmação do artista revela a perplexidade de um homem europeu que, depois de vir ao Brasil com ideia de se mudar para os trópicos, descobre a arte e um lugar com história e atmosfera extremamente dramáticas que o deixam perplexo.

“O que vemos nas pinturas de Marcier são os muitos sentimentos e estados de espírito diante do mundo à sua volta”, observa. Nas telas, a visão emotiva convive com a organização formal cuidadosa dos elementos.

Edson Brandão é subsecretário de Cultura de Barbacena e um dos responsáveis pela transformação, em 2004, da residência do pintor em Museu Casa Emeric Marcier. “Salvar da destruição um imóvel com afrescos significou um momento de reconhecimento da obra de Marcier. Porém, a casa ainda não cumpriu o papel de ser o centro de referência da obra dele, incentivando estudos e catalogação da obra para que ela não caia no esquecimento”, conclui.


MURAIS

Emeric Marcier executou murais com temas religiosos em Barbacena, na Capela Cristo Rei de Mauá (São Paulo) e no antigo Convento dos Dominicanos (hoje Escola da Serra), em Belo Horizonte, onde pintou Encontro em Emaús, afresco restaurado em 2009. A partir de 1971, sua morada passou a ser definitivamente o Rio de Janeiro. Judeu, converteu-se ao catolicismo após ter uma visão na Praia de Icaraí, em Niterói. No entanto, há quem diga que a conversão ocorreu após conhecer a arte barroca de Minas.O artista se casou com Júlia Weber Vieira da Rosa, tradutora e enfermeira da Cruz Vermelha, com quem teve sete filhos. Entre eles, Jorge Tobias Marcier (1948-1982), pintor como o pai.
Morreu de infarto, em Paris, e foi sepultado em Barbacena.

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