As imagens e os relatos da destruição em Nova Orleans depois da passagem do furacão Katrina ganharam o mundo em 2005.
“Lá, sem luz, com pouca água e comida, em poucos dias grupos se formaram, assaltando, agredindo e violentando as pessoas”, lembra Lacerda. “Fiquei muito impressionado com a velocidade com que nós humanos regredimos quando privados das condições de vida que conhecemos.”
O escritor carioca conta que, desde aquele episódio, passou a avaliar as ameaças climáticas no planeta em uma nova dimensão, “não apenas a de sobrevivência da espécie, mas a de preservação da própria humanidade”.
Lacerda, então, pesquisou sobre os riscos provocados pelas alterações no meio ambiente até considerar o tema adequado para um romance direcionado aos jovens. Todo dia é dia de apocalipse é um lançamento da editora FTD.
Com leitura prioritariamente voltada para estudantes, o livro dribla o ranço didático graças às ilustrações criativas de Mariana Valente e à prosa fluente e bem-humorada de Lacerda, autor de outro bem-sucedido romance juvenil, o poético O fazedor de velhos (2008).
Também tradutor e editor, Rodrigo Lacerda acaba de ganhar o Jabuti de melhor adaptação por Hamlet ou Amleto? (Zahar), forma sagaz de apresentar uma das obras mais conhecidas de Shakespeare às novas gerações.
“Há uma estranha beleza, e um senso de justiça, em ver que mesmo a espécie mais prodigiosa da natureza não tem sua sobrevivência garantida.” Esse trecho de Todo dia é dia de apocalipse ajuda a compreender sua motivação para escrevê-lo? Acho que minha consciência ecológica passa por uma destituição da humanidade como espécie acima das demais. Somos tão frágeis como todas as outras, e igualmente “animalescos”, muito embora nos sintamos capazes não só de alterar as condições de vida no planeta e de extinguir ou salvar essa ou aquela espécie. Temos programações biológicas, além de condicionantes históricas e econômicas, que nos fazem explorar os recursos naturais de forma desordenada. Precisamos combater isso, mas a melhor forma de fazê-lo não é ignorando-o, a meu ver, e sim admitindo-o. Somos animais, e nossa razão não basta para negar essa condição. Nesse sentido, sim, acho que a frase resume um pouco o que penso.
As mudanças climáticas não entram na lista dos temas discutidos diariamente pelos brasileiros. Levar o assunto aos jovens, por meio da literatura, pode ser um caminho para trazer à tona a discussão, ainda mais quando os EUA elegem como presidente Donald Trump, que chama de “farsa” o aquecimento global?
Precisamos exigir que nossos líderes levem em conta a questão ecológica em seus planos de desenvolvimento, em seus projetos de país. Crescer como fez a China, de forma tão ecologicamente irresponsável que agora tem o ar de suas maiores cidades irrespirável, é resolver apenas metade do problema. Ou como fez o Brasil nos últimos anos, que também cuidou muito mal do assunto. A eleição de Donald Trump é um desastre nesse sentido. Espero que o livro ajude os jovens a ver isso. Mas não podemos imaginar que iremos resolver o problema lutando contra o desenvolvimento científico e tecnológico, pelo contrário, precisaremos de mais tecnologia e de muita ciência para resolvê-lo, e nesse sentido precisaremos do capital e das grandes empresas. Temos de atraí-los para a causa, e não combatê-los, com ou sem Trump e equivalentes.
Você consegue traçar uma comparação entre o novo livro e seu outro romance juvenil, O fazedor de velhos?
Acho que os dois protagonistas – Pedro, de O fazedor de velhos, e Ziggy, do novo livro –, têm uma inquietação que é semelhante.
O que muda na sua linguagem quando escreve um romance juvenil?
Na verdade, quando escrevo para jovens uso a minha linguagem mais natural, a que uso no meu dia a dia. Não simplifico o que quero dizer, mas tento fazê-lo de maneira menos rebuscada, mais espontânea, sem grandes pretensões formais. Além disso, procuro tratar de temas sérios com leveza, com humor, aproximando meu leitor da história e dos personagens, sem colocar obstáculos desnecessários. Até porque, eu, quando jovem, já era tão angustiado que não gostaria de me ver aumentando na vida dos outros o peso deste momento tão difícil da vida que é a adolescência.
Acredita que os defensores do meio ambiente ainda são tratados como avis rara no ecossistema nacional ou isso começa a mudar?
O Brasil é, como de hábito, estranho nesse ponto. O nosso Partido Verde não está na dianteira da luta pela inclusão da causa ecológica nos grandes projetos nacionais. Nas duas últimas eleições tivemos a Marina Silva, diretamente ligada à causa ecológica, como candidata à Presidência, mas a questão religiosa pesa contra ela justamente perante o eleitorado mais progressista. Então, as forças pró-ecologia brasileiras apresentam contradições. E realmente não vejo uma parcela do eleitorado colocando a questão acima de todas as outras, o que acho uma pena. Num país politicamente tão dividido e polarizado como o Brasil, a ecologia poderia muito bem servir de ponte, de objetivo comum a todas as forças, por mais que elas se enfrentem nos outros pontos em aberto da nossa sociedade.
Você acaba de ganhar o Jabuti pela adaptação Hamlet ou Amleto? (Zahar).
Sempre que me convidavam para fazer uma adaptação de alguma peça do Shakespeare, eu não me animava muito. Adaptar, no caso, seria contar a história com outras palavras, ou seja, não colocar o leitor em contato com a poesia dramática do Shakespeare, que é o que ele tem de melhor. Para piorar, não podemos esquecer que o Shakespeare usava histórias que já existiam antes dele, como a do Hamlet, que é uma lenda dinamarquesa do século 13. Em resumo, nas adaptações que existiam por aí, de Shakespeare mesmo não sobrava nada, ele era apenas o gancho comercial. Só me animei a fazer um Shakespeare para jovens quando vislumbrei esse livro meio híbrido, que combina um narrador ficcional, um diretor de elenco orientando um ator que irá interpretar o papel de Hamlet, uma tradução da peça fiel mas numa linguagem acessível, e um guia de leitura, que dê os subsídios históricos necessários para que as falas mais obscuras dos personagens se tornassem perfeitamente compreensíveis. Assim, aproximei o leitor jovem do texto original sem perder a força da poesia shakespeariana.
Todo dia é dia de apocalipse, mesmo tratando de um tema de grande seriedade, é pontuado pela leveza. Acredita que falta um pouco mais de humor na ficção contemporânea brasileira, ainda mais diante de tempos tão amargos?
Acho que senso de humor nunca é demais. Meus dois grandes autores da adolescência, Eça de Queiroz e João Ubaldo Ribeiro, são escritores maravilhosos, que tiveram todas as glórias da carreira, respeitados pelos críticos mais exigentes, e que nem por isso abriam mão do humor.
E na vida de um escritor no Brasil? Todo dia é dia de apocalipse?
Todo minuto é de apocalipse! Ao longo do dia, portanto, são 1.440 apocalipses.
“Num país politicamente tão dividido e polarizado como o Brasil, a ecologia poderia muito bem servir de ponte, de objetivo comum a todas as forças, por mais que elas se enfrentem nos outros pontos em aberto da nossa sociedade”
“Procuro tratar de temas sérios com leveza e com humor, sem obstáculos desnecessários. Quando eu era jovem, já era tão angustiado, que não gostaria de me ver aumentando na vida dos outros o peso deste momento tão difícil da vida que é a adolescência”
Todo dia é dia de apocalipse
De Rodrigo Lacerda
FTD Educação
80 páginas
R$ 40
Hamlet ou Amleto? Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos
Adaptação da obra de Shakespeare
De Rodrigo Lacerda
Editora Zahar
296 páginas
R$ 44,90