Artes e Livros

Historiadora lança biografia do médium João de Deus

Maria Helena T. Machado traça panorama do espiritismo no Centro-Oeste e insere a religiosidade popular como canal de busca de sentido na pós-modernidade

Severino Francisco

O médium João de Deus

O caso de João de Deus desafia a ciência. Ele realizou milhares de cirurgias espirituais sem hipnose, anestesia ou assepsia. A maioria dos relatos é de sucesso na cura. Ao escrever a biografia de João de Deus, a historiadora Maria Helena P. T. Machado discute a relação entre ciência e religiosidade popular, mas essa não é a questão central do livro João de Deus: Um médium no coração do Brasil (Cia das Letras/Fontanar).


Maria Helena insere o trabalho da Casa Santo Inácio, em Abadiânia (GO), no chamado Movimento da Nova Era, de busca de sentido em um mundo em crise de valores. Ela teve contato com o centro quando viveu uma experiência de perda, mas o que a impulsionou a escrever o livro não foi uma razão pessoal. Nesse trabalho, seguiu os padrões de rigor acadêmico ao abordar a trajetória de João de Deus, a relevância do espiritismo no interior de Goiás nas décadas de 1940 e 1950 e a experiência da cura física ou espiritual.

Pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), a autora é especializada em história da escravidão, abolição e pós-emancipação.

João de Deus se tornou personagem de alcance internacional depois de conceder longa entrevista ao programa de Oprah Winfrey, a mais famosa apresentadora da TV norte-americana. Atualmente, a Casa Dom Inácio Loyola é frequentada por brasileiros, alemães e norte-americanos.

O livro de Maria Helena está sendo traduzido para o inglês e será lançado pela prestigiosa editora Random House.

 

Pacientes e turistas procuram tratamento em Abadiânia, cidade do interior de Goiás

 

Como se deu a sua relação com o tema e com João de Deus?
Na verdade, esse livro tem a proposta de uma pesquisa de padrão acadêmico a respeito da vida de João de Deus. É uma observação etnográfica sobre a Casa Dom Inácio e as cirurgias mediúnicas. O que liga esses dois modos de redação e de análise é o meu próprio relato pessoal. Uma questão fundamental que me guiou é o fato de que não iria me defrontar com a questão da fé ou da ciência, que está discutida, mas não é a questão central. Do meu ponto de vista, o mais importante era estudar a vivência das pessoas que tiveram a experiência da cura e da espiritualidade a partir do contato com João de Deus.

Por que a senhora se interessou pela perspectiva da experiência da cura?

Porque quis fazer uma análise da espiritualidade contemporânea e de como as pessoas estão reconceituando esses espaços de espiritualidade ou de vivência interior. Percebo que essa experiência está inserida no movimento da chamada Nova Era, de retomada da religiosidade, mas uma religiosidade personalizada. Muitas pessoas não querem se vincular à religião e aos dogmas das instituições. Estamos vivendo uma forma ecumênica importante de experiência espiritual. Não é apenas a atitude de ficar rezando, mas, sim, uma maneira de viver novas formas de espiritualidade, de defesa da ecologia e de direitos humanos. É um novo humanismo. Claro que o livro traça uma biografia de João de Deus. No entanto, mais do que dizer o que ele faz, interessei-me em mostrar como as pessoas vivenciam a experiência do tratamento.

Como se cruzaram os caminhos individuais de Maria Helena e os da pesquisadora?

Esse tipo de livro ainda não é comum no Brasil. O antropólogo pós-moderno não faz nada sem se colocar como personagem. Na verdade, conhecia o trabalho de João de Deus, passei por uma perda e participei da corrente. No entanto, o livro não nasceu do problema, mas de minha própria ambição de fazer algo menos amarrado aos cânones da academia. Aquilo não fazia parte da minha vida profissional. O grande desafio foi me reinventar.

Há preconceito da universidade em abordar temas da religiosidade popular brasileira?
Sim, existe muito preconceito. O mais interessante é que quando fui até o centro de João de Deus, em Abadiânia, na fase da pesquisa, encontrei um monte de colegas da academia, inclusive médicos. Porém, a maioria tem vergonha de falar dessa experiência. Na hora do desespero, todos correm em busca de socorro. O pessoal da UnB (Universidade de Brasília), até pela proximidade, frequenta muito o centro do João de Deus.

Como explicar o surgimento de uma figura tão singular quanto João de Deus em Goiás?

Essa é uma das grandes questões do livro. Obviamente, João de Deus é uma figura icônica. É impressionante quantas pessoas estão conectadas a ele. A maioria das referências é positiva, é muito difícil encontrar alguém que diga que não aconteceu nada. E são pessoas de origens muito diferentes. Algumas estão rezando o Pai Nosso, a Ave Maria fora de lugar e tiveram uma explosão de choro. O mais impressionante é que João é um curador popular, nos moldes tradicionais. Na origem, era um raizeiro, fazedor de garrafadas, herbalista de raízes indígenas e africanas. Pegou Goiás no momento da Marcha para o Oeste, dos migrantes mineiros, muito pobres. Ele cresceu nesse mundo móvel de Goiás das décadas de 1940 e 1950. A influência do espiritismo é definitiva. A bibliografia fala muito da experiência do espiritismo nos centros urbanos, mas, em Goiás, a doutrina teve influência precoce muito forte em pleno sertão. Influenciou, por exemplo, na criação da cidade de Palmelo.

João de Deus faz procedimento cirúrgico nos olhos de um paciente


Em que medida a criação de Brasília influiu no desenvolvimento das atividades curativas de João de Deus?

A região tem uma carga mítica muito forte, já era citada na profecia do Dom Bosco como a terra prometida. A utopia das cidades astrais do livro Nosso lar, do Chico Xavier, é decantada da experiência da arquitetura modernista de Brasília. Em Palmelo, existe uma cidade astral que estaria acima da cidade física. Há indícios de que a fronteira que resolveria os problemas sociais Brasil está projetada no território do inconsciente. E seu João andava muito ali. Está imbuído dessa mobilidade, do horizonte diferente, da fronteira para um mundo novo. Até a década de 1980, ele era um curador tradicional, ocupava espaço na ausência da assistência médica em Goiás. Mas, depois, vira curador das classes médias, dos estrangeiros, dos intelectuais e de um público mais instruído e viajado. Esse público não busca o tratamento por falta de médico, mas por opção. O espaço da corrente se abriu para a experiência da espiritualidade coletiva. Os que buscam gurus indianos procuram João de Deus. O ambiente da construção de Brasília abriu novas fronteiras.

Essa demanda afetou ou transformou o comportamento e o perfil de João de Deus?

Mudou zero nas práticas dele. É algo muito interessante. Ele pouco fala, pouco explica, não muda. Permanece fiel a si próprio.

Quais foram os acontecimentos marcantes na história de João de Deus? A exclusão da escola?
Ele próprio definiu os momentos cruciais. A expulsão da escola, aos 14 anos; a primeira incorporação completa em Mato Grosso; a visão de Santa Rita de Cássia. Ele estava procurando trabalho, era alfaiate, trabalhou a infância inteira, desde os 5 anos. Desceu no rio e viu uma imagem. Foi conduzido a um centro espírita e operou pela primeira vez. Foi andarilho, migrou por diferentes estados e por diferentes profissões. Passou por um longo período de peregrinação mística, errância e transformações internas. E vai assumindo o papel de curador. Não é que ele queira; ele é impelido a atuar. Outro momento essencial foi a criação da Casa Dom Ignácio, em Abadiânia, em 1979.

Como explicar as milhares de cirurgias mediúnicas físicas realizadas por ele, sem sequelas? Isso desafia a ciência?
Na verdade, esta pergunta é irrespondível. Para responder, teria de fazer uma pesquisa científica, o que ninguém conseguiu até hoje. É preciso fazer exame médico antes, novo exame depois de um mês, acompanhar as reações das pessoas tratadas. São pesquisas de longo alcance e muito caras. No caso, o tipo de operação que João de Deus faz é o mesmo que Arigó fazia. (José Arigó, mineiro de Congonhas, recebia o espírito do alemão doutor Fritz. Morreu em 1971, aos 50 anos). Um grupo de médicos norte-americanos começou a pesquisá-lo. Filmaram as cirurgias, mas não foi adiante. É preciso estabelecer um padrão científico e estatístico. Assisti a centenas de cirurgias – elas não têm hipnose, anestésico ou assepsia. Você nunca vai poder dizer se curou ou não dentro dos parâmetros médicos tradicionais, pois cirurgia mediúnica não segue um protocolo médico. Quem vai pagar R$ 1 milhão para fazer essa pesquisa?

Qual é o perfil da Casa Dom Inácio, criada por João de Deus em Abadiânia? O que se vê ali pode ser chamado de religião?
É um lugar de cura, do encontro de si próprio. Ao início e ao final dos trabalhos, voluntários apresentam palestras. Mas difere de religião. Serginho Groismman fez uma entrevista com João de Deus e perguntou se ele preparava os voluntários. João respondeu que não, eles já chegam prontos para trabalhar na Casa. Não é uma comunidade, os voluntários têm a sua vida individual, cada um tem o seu negócio para sobreviver. É uma receita que deu certo. No fundo, confere-se autonomia para cada um participar como quer e como pode.

Que sincretismo João de Deus construiu? Em que isso difere do espiritismo tradicional? Como razão e fé podem se conciliar?
Embora a base do que ele acredita venha do espiritismo, ele tem uma interpretação muito pessoal. João se declara católico, devoto de Santa Rita de Cássia e de Santo Inácio. Mas, refazendo a vida dele, constatei que tem influência da umbanda e de Yokanã, o líder religioso que fundou uma comunidade em Goiás. A ocupação do Centro-Oeste proporcionou o alargamento dos horizontes.

Em que medida a adesão à mobilização de cura deflagrada por João de Deus está integrada a um movimento maior de retomada da espiritualidade no mundo pós-moderno?
Esta é uma questão importante. As pessoas vêm de lugares muito diferentes. Na Casa Dom Inácio, você encontra o roceiro de Goiás ao lado da Camila Pitanga, do engenheiro do Rio do Janeiro, do pequeno empresário do Rio Grande do Sul, de alemães e de norte-americanos. Cada um tem uma entrada, uma percepção, A ausência de dogmas permite que cada um se insira de maneira muito pessoal e livre. O que está em jogo não é só a cura física, mas também a cura da espiritualidade, a evolução interna. Quando vai entrevistar os frequentadores, percebe que as pessoas querem descobrir a si mesmas, colocar-se de maneira efetiva no mundo, com todos os problemas e sofrimentos internos. Essa busca, obviamente, ligada à chamada Nova Era. Cada um busca o seu próprio caminho.

Que conexão a senhora estabelece entre a experiência de João de Deus e a de Tia Neiva, no Vale do Amanhecer?
O Vale do Amanhecer, da Tia Neiva, e a Nova Jerusalém, de Yokanã, têm linhas diferentes, mas são fruto da mesma experiência naquele cenário da Marcha para o Oeste. Estão na mesma dinâmica do João de Deus, embora com diferenças grandes. É incrível a popularidade de João de Deus nos Estados Unidos. Meu livro já está sendo traduzido para o inglês, será publicado pela Random House. Ele ocupou o espaço de líder espiritual para todos esses movimentos que estão na fronteira do novo, na fronteira da profecia. O próprio JK era considerado a reencarnação de Aknneton. É um movimento para as pessoas reimaginarem o mundo.

As atividades de cura da Casa Dom Inácio de Loyola não estão assentadas em uma doutrina, todas as ações estão relacionadas com a figura de João de Deus. Elas se encerrarão com a morte dele?
Esta é a grande pergunta. Tudo o que ocorre na Casa gira em torno dele. E ele não tem sucessor. Ao ser perguntado sobre essa questão, João de Deus disse que não sabe, mas tem a certeza de que a Casa vai continuar funcionando. Obviamente, essa estrutura de corrente, de pessoas concentradas para transmitir energia espiritual, é uma coisa coletiva. Mas quem organiza, quem materializa isso é o João de Deus. Não há como responder a esta pergunta agora.

A religiosidade popular brasileira é um canal para a busca de sentido no mundo pós-moderno?

Sou pesquisadora da história da escravidão no Brasil. Claro que existe uma crítica pertinente da religião, dos dogmas e da mercantilização da Nova Era. Mas a gente não pode jogar o bebê fora; e, no caso, o bebê é a vontade de reinventar o mundo. Há uma crise da fragmentação do sujeito. A fragmentação do caminho e das grandes narrativas. A fragmentação das utopias, do socialismo, do capitalismo, do tempo reto e evolutivo. Então, essa é a busca de reinvenção do sentido no mundo. É preciso superar o cientificismo A fé na razão é mais uma fé.

JOÃO DE DEUS: UM MÉDIUM NO CORAÇÃO DO BRASIL Maria Helena P. T. Machado