Para analisar questões referentes a essa profícua relação e seus desdobramentos, optou por examinar as ideias de Martin Heidegger (1889-1976). O filósofo alemão acredita na linguagem da poesia como fala do próprio ser e que os verdadeiros pensadores e poetas são ouvintes da voz do ser e não metafísicos.
As palavras de Cicero encerrarão o Ciclo de Conferências Mutações – Entre dois mundos, projeto com 30 anos de existência e que também contemplou São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Brasília, tendo como curador o filósofo e jornalista Adauto Novaes. Por meio dessa iniciativa, no último mês o público mineiro teve acesso privilegiado ao que pensam 13 nomes da intelectualidade brasileira. Maria Rita Kehl, José Miguel Wisnik, Newton Bignotto, Jorge Coli, Eugênio Bucci, Francis Wolff e Francisco Bosco foram alguns dos palestrantes desse ciclo.
Entrevista
ANTONIO CICERO, poeta, letrista e filósofo
A obra de Heidegger confere especial espaço para discutir a ontologia. Como, na visão do filósofo, a metafísica se relaciona com as artes?
A partir da metafísica e, sobretudo, a partir da metafísica moderna da subjetividade, a obra de arte é considerada do ponto de vista estético, como um objeto destinado a ser desinteressadamente contemplado por um sujeito. Para a ontologia antimetafísica de Heidegger, isso implica uma inaceitável separação entre a arte, por um lado, e a política, a comunidade, a história etc.
Heidegger, como os gregos, acreditava que a arte e o pensamento estavam ligados. Como é a questão da transcendência da arte para ele?
Simplesmente, a verdade é capaz de se revelar tanto em obras de arte quanto em pensamentos filosóficos. Em A origem da obra de arte, ele afirma que “a essência da arte é a poesia. A essência da poesia, porém, é a instauração da verdade”.
A obra de Heidegger faz distinções entre as diferentes linguagens artísticas? Por exemplo, se música, poesia e pintura estão em patamares diferentes.
Como mencionei, Heidegger pensa que a poesia é “a essência da arte”. É que as outras artes se situam no espaço já aberto pela linguagem.
O senhor poderia me explicar como Heidegger relaciona a linguagem e o ser? Como é o conceito de morada do ser?
A linguagem é a morada do ser porque, embora um ente possa ser concebido independentemente da linguagem, não se pode conceber o ser senão através da linguagem.
A arte também tem papel de formar pensamento crítico. Na opinião do senhor, como esse papel se relaciona com a política? O artista brasileiro, em geral, tem essa noção da relação entre arte e política?
Para mim, o feito mais importante da arte – e que, sem dúvida, tem, em última instância, um efeito político – é o de, subvertendo a apreensão instrumental do ser que preside a nossa vida cotidiana – apresentar-nos outro modo – um modo poético – de apreensão do ser. Com isso, ela enriquece nossa vida.
O senhor já abordou em textos a polêmica em torno da relação de Heidegger com o nazismo, inclusive defendendo que isso não invalida a contribuição filosófica deixada por ele. Como é possível fazer essa separação e o que é preciso observar no sentido de validar essa contribuição?
Heidegger é o mais profundo pensador antimoderno e anti-iluminista – e contrário à filosofia moderna e ao Iluminismo – que conheço. Entretanto, exatamente por ele ser profundo, obriga os pensadores que defendem a modernidade filosófica e o Iluminismo, como eu, a se aprofundar, para serem capazes de estar à altura de enfrentá-lo. E isso é admirável.
Numa entrevista de 2010, o senhor diz que “reconhecer alguém como seu inimigo fundamental é antes respeitá-lo do que desprezá-lo”. Como o senhor vê a cultura da intolerância que tem se alastrado pelo Brasil, sobretudo a partir da seara política?
Acho inteiramente lamentável o primarismo a que desceu o nível das discussões políticas no Brasil.
Por um lado, há intensa mobilização em defesa da punição aos responsáveis pelos desaparecidos políticos no Brasil. Por outro, o Brasil assiste, quase insensivelmente, à eliminação de jovens negros, pobres e das periferias, sem que setores progressistas se mobilizem para pôr um fim nesse ‘genocídio’. Por que tanta indiferença?
Porque, como de hábito, nós, brasileiros, continuamos a deixar de dar à educação e aos direitos humanos a prioridade absoluta que eles não poderiam deixar de ter..