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Estado de Minas

Escritor Daniel Galera fala sobre seu novo romance, 'Meia-noite e vinte'

Na narrativa, ambientada em Porto Alegre, celebrado romancista examina os impasses de sua geração diante do sentimento de finitude


30/09/2016 09:07

(foto: Carlos Vieira/CB/D.APress)
(foto: Carlos Vieira/CB/D.APress)
O início da internet e o fim do mundo andaram de mãos dadas na virada para o século 21. Ou, ao menos, a sensação de finitude, simbolizada no bug do milênio, que atemorizou milhões nas últimas semanas do século 20. A euforia com a criação de um fanzine virtual, o Orangotango, e o sentimento de incerteza em relação ao futuro no final dos anos 1990 movem os quatro jovens protagonistas de Meia-noite e vinte, novo romance de Daniel Galera.

 

Quase duas décadas depois, o mais famoso deles, o escritor Andrei Dukelsky, está morto. O reencontro dos outros três amigos – a pesquisadora Aurora, o publicitário Antero e o jornalista Emiliano – torna-se, então, o ponto de partida do primeiro romance de Galera depois do êxito de Barba ensopada de sangue (2012),  35 mil exemplares vendidos no Brasil e traduzido para 12 países.

 

Um dos grandes narradores da literatura contemporânea brasileira, Daniel Galera nasceu em 1979, em São Paulo, mas passou boa parte da vida em Porto Alegre. Castigada por uma onda de calor e atônita diante de manifestações de rua, a capital gaúcha também pode ser considerada um dos personagens de Meia-noite e vinte. Embates entre o homem e a natureza, um dos pontos fortes de Barba ensopada de sangue, estão de volta no novo romance, que sai com tiragem de 20 mil exemplares.

 

Mas há diferenças, tanto do ponto de vista formal – agora são três narradores que se alternam – como temático (uma narrativa eminentemente urbana). O que se mantém é a destreza de Galera no exercício de sua profissão, com passagens que impressionam pela combinação de técnica e emoção. A seguir, em entrevista por e-mail ao Pensar, o escritor conta como surgiu Meia-noite e vinte e explica seu objetivo com o livro: “Tentei retratar um conjunto de ansiedades que me parece difundido pelo planeta inteiro, relacionadas à velocidade e precariedade da vida no presente momento da história humana”.

Qual o ponto de partida de Meia-noite e vinte?
O momento que fundou esse romance é aquele descrito nas primeiras páginas por Aurora, o verão escaldante de Porto Alegre em janeiro de 2014. Foram semanas de teor pós-apocalíptico, com uma combinação de ruas esvaziadas pelas férias e pela greve dos ônibus, violência, tensão política e mudança climática. Ali comecei a pensar na história de amigos que se reuniam na atualidade após a morte de um deles, uma história que pudesse articular as diferenças entre o fim dos anos 1990 e o momento atual, sobretudo em termos de projetos de vida e ansiedades com relação ao fim do mundo.

Como surgiu a decisão de alternar as vozes narrativas no novo romance?
Minha primeira ideia era ter uma narradora principal, Aurora, com o complemento ocasional de outros personagens narradores. No processo de escrita, a distribuição desses papéis de narração foi se alterando organicamente, até eu entender que o romance seria narrado pelas vozes de Aurora, Antero e Emiliano. Foram os personagens que falaram mais alto. De todo modo, uma alternância de pontos de vista me parecia ideal para essa história desde o início, e também representa um contraste com meus romances anteriores, cada um com seu único narrador.

Em que mundo vivem os personagens de Meia-noite e vinte? Esse mundo pode ser abreviado pela morte, como ocorre com o personagem Andrei?
É um mundo contraditório em que a expectativa de vida e o acesso às ciências da saúde nunca foi maior, em que o progresso tecnológico e a produção de riqueza não cessam, mas no qual a precariedade dos projetos de vida e das certezas também só aumenta. Sobretudo, é um mundo assombrado por uma ansiedade pré-apocalíptica que parece estacionada para sempre. Conceitualmente, simbolicamente, a morte nunca esteve tão distante do ser humano. Por outro lado, a noção de que a própria continuidade da espécie pode estar em risco se infiltra na existência como um parasita.
 
O que você levou de sua experiência no fanzine Cardosonline para as páginas de Meia-noite e vinte?
Há uma tentativa de reconstituir o que foi o entusiasmo e furor da minha geração com a chegada da internet como meio de publicação e expressão. O mail-zine Orangotango, criado pelos protagonistas nos anos 1990, é uma versão ficcionalizada do Cardosonline, que fiz com amigos em Porto Alegre na mesma época. Está tudo ali, inclusive o deslumbramento. Mas acredito que iniciativas como a do Cardosonline, e depois dos primeiros blogs e sites literários, foram marcantes para desenhar a internet que temos hoje, na qual a escrita de si e a ironia se tornaram o discurso predominante, não apenas nas redes sociais, mas também no jornalismo, nos apps etc.

O embate do homem com o ambiente, um dos pontos fortes de Barba ensopada de sangue, ressurge em Meia-noite e vinte por meio de observações agudas (“Éramos inadequados àquela natureza. Não espantava que desejássemos destruí-la”). Esse é um dos temas que o motivam a escrever?
Certamente. Me interessa não só a relação do homem com a natureza, o ambiente urbano etc., mas também o contato permanente dos nossos corpos e mentes com sensações, intempéries, forças físicas e estímulos físicos de todo tipo. A consciência não existe sem o conjunto da nossa experiência sensorial, e isso me parece crucial para escrever ficção envolvente.

É possível considerar Meia-noite e vinte como um romance de geração, como O encontro marcado (1956), de Fernando Sabino, e Feliz ano velho (1982), de Marcelo Rubens Paiva? Ou, ao menos, o romance de uma geração marcada por expectativas que começam a se exaurir, como define a personagem Aurora?
Prefiro não colar essa categoria a nenhum livro meu nem compará-los com qualquer romance considerado geracional. Isso cabe aos críticos e leitores, se desejarem fazê-lo. Mas é verdade que Meia-noite e vinte busca capturar um certo período de vida de uma certa geração, bem situada em termos sociais, materiais e históricos. Para jovens brancos de classe média que estudaram em faculdades de humanas em Porto Alegre na virada do milênio, pode ter algo de livro geracional. Para além disso, tentei retratar um conjunto de ansiedades que me parece difundido pelo planeta inteiro, relacionadas à velocidade e precariedade da vida no presente momento da história humana. Os problemas mais graves que a humanidade enfrentará no futuro transcendem quase todas as diferenciações imagináveis entre as pessoas, exceto, talvez, a do acúmulo de riqueza.

Um dos personagens menciona o desejo de preparar o filho para “um mundo bem diferente daquele que fomos criados”. Você acredita que a dificuldade de enfrentar um “mundo que se dissolve diante de seus olhos”, como está no texto de apresentação do livro, une os três protagonistas e os coloca na condição de representantes de uma época?

A sensação de impotência diante das instabilidades do presente une, sim, os três narradores. Todas as épocas tiveram suas incertezas e tumultos. O que talvez diferencie a nossa é a soma de excessos que Antero e outros personagens mencionam no livro. Excesso de riqueza, de população, de informação, de velocidade, e por aí vai. Lidar com os múltiplos excessos (e com as precariedades que deles resultam, tal como a de recursos naturais, de garantias sociais, de espaço físico) é o desafio da presente época.

Em uma das passagens mais fortes, há a descrição de uma manifestação em Porto Alegre, protesto narrado por um personagem que, inebriado com os fatos que vivencia, passa a participar do ato como black bloc e se sente “com vinte anos de novo”. A recriação de um passado tão próximo, que ainda ecoa no presente, representa um desafio adicional?
Escrever ficção sobre um passado tão recente é um desafio bem especial. Tive uma dificuldade enorme para decidir que elementos do tempo presente entrariam no romance. Soma-se a isso a dificuldade prática de se dedicar a imaginar ficção enquanto acompanhamos o noticiário em tempos tão turbulentos. Idealmente, a ficção precisa de um certo afastamento cronológico para absorver a realidade. Assim, ela pode fornecer visões que complementam outras formas de debater e interpretar os fatos. Mas desta vez me pareceu promissor escrever sobre o presente, até emulando um pouco a precariedade e a velocidade que nos desnorteiam.

Escrever ficção em um país tão contaminado pelas discussões políticas é também um ato político?

De um jeito ou de outro, sempre é. A ficção pode ter intenções políticas claras, se posicionando a respeito de questões práticas e ideologias. Mesmo quando não tem essas intenções, a contribuição de um livro para a existência humana tem um papel político, no sentido de alimentar nosso repositório de conhecimento e capacidade de compaixão.

De onde vem a sua literatura? Observação, experiência ou lembranças?

Todas as acima.

Trecho

“Eu a interrompi de maneira um pouco ríspida, dizendo que um grande amigo nosso tinha morrido de forma estúpida e aleatória por causa da miséria que havia acompanhado a raça humana desde sempre, e que não tinha nada de novo nisso. Não apenas o aquecimento global ou com o fim do mundo. Apenas um mundo havia acabado, e era o mundo de Andrei. Esse mundo somente ele conheceu. Mas ele havia se esforçado pra compartilhá-lo da única maneira que estava a seu alcance, a literatura, esforço que o consumia quase às raias de um autismo social. E a moral da história naquilo era o prevalecimento do que nos fazia humanos, incluídos o medo da morte e o medo do apocalipse. Era o compartilhamento e a propagação desses e de todos os outros sentimentos e valores, não importava quão fodidos estivéssemos nós ou o mundo, sempre na direção daquela unidade ideal em que todas as vidas se apagavam somente pra se encontrarem, o nosso acesso às demais vidas, a entrega que nos permitia alcançar uma dissolução em vida no lugar de uma dissolução na morte, que de todo modo viria cedo ou tarde mas que não deveria chegar aos trinta e seis anos com um tiro na cabeça por causa de um telefone celular.”


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