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Espetáculo 'Caranguejo overdrive' encena relação do sujeito com a política e seus efeitos sobre a cidade

Depois de temporada de sucesso no Rio, a peça encenada pela Aquela Cia. de Teatro terá apresentações hoje e amanhã, no Sesc Palladium

Pedro Galvão

“Rios, pontes e overdrives, impressionantes esculturas de lama.” O Recife cantado por Chico Science não foi a única metrópole litorânea do Brasil a ter seus manguezais suplantados pelo concreto ao longo dos últimos séculos.

 

A história dos “homens e caranguejos”, contada pelo geógrafo Josué de Castro em seu romance que leva esse título, de 1967, e por Science & Nação Zumbi no disco Da lama ao caos, gravado em 1994, já tinha lugar no Brasil, mesmo antes da Proclamação da República.
Escrita por Pedro Kosovski e dirigida por Marco André Nunes, a peça levada ao palco pela Aquela Cia. de Teatro mistura várias linguagens ao ritmo do manguebeat. - Foto: João Júlio Melo/Divulgação
Caranguejo overdrive, em cartaz hoje e amanhã no Sesc Palladium, viaja até o Rio de Janeiro, capital imperial, para contar a história de Cosme, um catador de caranguejos recrutado pelo Exército e enviado ao combate na Guerra do Paraguai.

 

Sobrevivente da matança na Bacia do Prata, ele retorna à cidade natal e encontra o ecossistema de onde tirava seu sustento totalmente aterrado e urbanizado.

Escrita por Pedro Kosovski e dirigida por Marco André Nunes, a peça levada ao palco pela Aquela Cia. de Teatro mistura várias linguagens ao ritmo do manguebeat.

 

Canções originais intercaladas às de Chico Science & Nação Zumbi, todas tocadas ao vivo, compõem a trilha sonora. Vozes e performances de quatro atores dão vida ao protagonista em sua saga metamorfoseante entre a “lama e o caos”.

“Caranguejo vem de uma pesquisa de linguagens desenvolvida pela companhia ao longo de 10 anos em parceria com Marco André Nunes.

 

A peça nasce dessa tentativa de pensar a cidade como uma grande arquitetura de narrativas”, conta o autor, que, por ser natural e radicado no Rio de Janeiro, contextualizou o arcabouço teórico e histórico relatado por Josué de Castro sobre o Recife à realidade da capital fluminense.

Apesar de a trama se passar há quase um século e meio, as discussões que ela provoca são bem atuais na cidade que foi tão modificada nas últimas décadas em função dos megaeventos esportivos que sediou.

 

“Nos apropriamos dessa poética do mangue que o Josué (de Castro) propõe, e que foi igualmente apropriada pelo manguebeat, para trazer à tona essas questões emergentes e políticas sobre opressão, gentrificação e as muitas decisões tomadas no gabinete, sem debates públicos”, define Kosovski.

“Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”, canta Chico Science na canção que dá nome ao cultuado disco Da lama ao caos, como se estivesse se dirigindo propriamente ao geógrafo.

 

A conexão estabelecida entre a música de um e os estudos geopolíticos do outro passa pela figura que vive imersa na lama, catando e comendo caranguejos para sobreviver, mas que acaba morrendo no próprio mangue e virando o alimento do crustáceo.

Esse estereótipo é também a base usada pela direção da peça para nortear a estética dos movimentos apresentados.

“O personagem sai do ciclo, sai do mangue, vira homem, mas volta a ser caranguejo.

 

São quatro atores que dão corpo e voz à narrativa, é uma polifonia, um representa em algum momento o homem cheio de lama, outro representa o caranguejo desfigurado, outro é a própria voz e o (Matheus) Mecena, que é quem representa o Cosme na maior parte do tempo, é o cara que nos faz perceber, na sua composição física, esse devir animalesco nele”, explica o diretor Marco André Nunes. Alex Nader, Eduardo Speroni e Fellipe Marques completam o time de atores que interpretam Cosme.

Trazida a Belo Horizonte pelo projeto Teatro em Movimento, cujo objetivo é descentralizar as principais montagens teatrais cariocas e paulistas, Caranguejo overdrive estreou no Rio de Janeiro em junho de 2015 e, desde então, coleciona elogios da crítica por onde passou.

 

O espetáculo também levou o Prêmio Cesgranrio em duas categorias e em três nos prêmios Shell e APTR. Entre elas, a de melhor atriz, entregue à artista colombo-brasileira Carolina Virguez, que interpreta uma prostituta paraguaia que recebe Cosme de volta ao Rio após a guerra.

“Contamos uma história que as pessoas querem ouvir, de forma inusitada, insuspeitada e de uma maneira que as atinge e não de uma forma que elas já viram. Essa junção acaba gerando essa empatia do público com o espetáculo”, diz o diretor Marco André para justificar o reconhecimento positivo que a peça tem tido até aqui.

Atribuindo os bons resultados à combinação do trabalho a longo prazo e aos desdobramentos que o tema em si permite, Pedro Kovalski complementa:

 

“É o reconhecimento de um trabalho que não é recente, vem há 12 anos com muita coerência e continuidade. E, por outro lado, por tocar, através desse fundo histórico, em questões emergentes e urgentes do debate do sujeito com a política ao redor, a peça desperta tanto interesse e atenção”.

CARANGUEJO OVERDRIVE
Com Aquela Cia. de Teatro. Peça de Pedro Kosovski, com direção de Marco André Nunes. Hoje e amanhã, às 21h. No Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro). Ingressos a R$ 30 e R$ 15 (meia). Classificação: 16 anos.
 
 

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