Escreveu quatro romances: Relato de um certo Oriente, Dois irmãos, Cinzas do Norte (esse último vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura e todos os três primeiros ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor romance) e Órfãos do Eldorado. Seus livros foram traduzidos em oito países, entre eles Itália, EUA, França, Espanha e outros – e já venderam, no Brasil, mais de 200 mil exemplares.
Milton Hatoum estará em Araxá neste sábado, no auditório da Fundação Cultural Calmon Barreto. Às 19h, conversa com o público em mesa-redonda com mediação de Ascânio Seleme. A homenagem ocorre um mês depois de outra, da Universidade Estadual do Amazonas, e dois dias antes da que vai receber da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), segunda-feira, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Em abril de 2017, receberá mais uma, no Festival Literário de Poços de Caldas.
Depois de adaptado para o cinema (Órfãos do Eldorado, de Guilherme Coelho), Hatoum chega à televisão, em janeiro, com a minissérie Dois irmãos, dirigida por Luiz Fernando Carvalho. O escritor conta que até 2017 deve terminar dois romances, “independentes, mas que se complementam”, nos quais está trabalhando há oito anos.
Em entrevista ao Estado de Minas, revela que a paixão pela literatura convive com o encanto pelo ensino: “Uma das atividades humanas mais fascinantes é o compartilhamento do saber e do conhecimento. É aquela frase linda de Guimarães Rosa que diz: ‘Se é professor quando se aprende, não quando ensina’”. E até revela sonhar com um volume de poemas que vem guardando escondido.
O escritor não esconde sua desapovação com a repressão às manifestações “Fora, Temer”, que pôde presenciar em São Paulo. “Estava no Largo da Batata e vi coisas que não via desde os anos 1970. Estão querendo intimidar as manifestações de protesto, mas isso não funciona mais”, relata. A seguir, trechos da entrevista.
5º Festival Literário de Araxá (Fliaraxá)
Até 18 de setembro. Pátio da Fundação Cultural Calmon Barreto, Praça Arthur Bernardes, 10, Centro, Araxá. Informações: www.fliaraxa.com.br.
OBRA
O que escrevi foram ficções que carregam minhas experiências de leitura, de vida, minhas preocupações éticas e estéticas. Publiquei pouco. Literatura é, para mim, aventura da imaginação, do conhecimento e da linguagem, que nos convida a conhecer uma cultura e a confusa e imperfeita alma humana.
ROMANCE
O romance indaga a todo momento a trajetória de uma vida e o seu destino. Não deixa de ser uma forma de resistência numa época em que há pouco espaço para a literatura e a filosofia. E há uma corrente ultraconservadora que pretende acabar com o pensamento crítico, com as ciências humanas. Nosso tempo privilegia a imagem banal, a comunicação rápida ou instantânea, a superficialidade, a celebridade efêmera, a vaidade quase doentia. Quando vejo pessoas irem às ruas para pedir o fim da democracia, fico pensando sobre a formação que tiveram. Se tivessem lido São Bernardo, Vidas secas, Raízes do Brasil ou um ensaio sobre a escravidão, não estariam nas ruas apoiando Bolsonaro e Cunha. Bom, depois de tanta desfaçatez, parece que esses apoiadores minguaram...
CRIAÇÃO
Sem nenhuma aderência à vida e até mesmo ao sofrimento do outro, é muito difícil construir narradores e personagens. Escrever ficção significa sair de si mesmo e inventar um microcosmo, um pequeno mundo paralelo, até certo ponto autônomo. Virgínia Woolf escreveu que é muito difícil retratar a si próprio, dizer a verdade sobre si mesmo e descobrir a si mesmo de tão perto.
PRAZER
O movimento do desejo da escrita deita, ainda, raízes em um certo prazer. Em momentos de angústia começo a ler textos que admiro. Quando pressinto o cerco da angústia, leio poesia. Quer algo mais bonito que os poemas Aniversário, Amar, Os bens e o sangue, de Carlos Drummond? Ou qualquer poema de Claro enigma? A leitura também nos defende da angústia e das coisas que nos ameaçam. Até mesmo o mundo opressivo e angustiante da ficção de Kafka me dá prazer no momento da leitura, que é sempre uma aventura e uma descoberta de tantas coisas que estavam ou pareciam estar ocultas.
POLÍTICA
Literatura não deveria ter um sentido político direto, ostensivo. Ela encena um duplo movimento: do interior para o exterior e vice-versa, integrando a verdade interna do narrador e o tempo em que ele vive. Não procuro separar a dimensão subjetiva da histórica. Admiro livros que sondam a alma humana e lançam um olhar no tempo em que os personagens vivem. É muito difícil alcançar uma grande síntese, uma espécie de magma que envolve tudo: o amor e a morte em sua dimensão humana e metafísica, a geografia, os conflitos sociais, a história, os mitos, o impulso do novo na escrita... Refiro-me a um romance genial: Grande sertão: veredas. Mas essa grande síntese é um cometa que só raramente brilha no céu escuro.
POESIA
Os dois vícios da minha vida de leitor são reler Guimarães Rosa e Carlos Drummond. Agradeço ter nascido no Brasil, pois posso lê-los no original. A leitura da poesia é fundamental para um romancista. Publiquei um livrinho de poesia que, graças a Deus, não foi reimpresso, apesar da capa do livro e das fotos que estão nele serem lindas. Percebi que não seria poeta... Ou que não seria o poeta que queria ser. Tentei atenuar essa frustração quando escrevi meu primeiro romance... A linguagem é mais lírica e, de algum modo, tateia a poesia. O Dois irmãos tem epígrafe de Carlos Drummond. Poetas, tradutores e artistas são personagens dos meus livros.
ESCRITA
O desejo de escrever não depende da idade, mas do impulso do desejo, da entrega passional à linguagem. Escrevi muitas coisas que não foram publicadas. Rasguei tudo. Quando reli esses textos, não vi sentido em guardá-los. Nada mais humano do que o fracasso... Mas tiveram o papel de exercitar a escrita e indicar o primeiro movimento em direção à prosa. Escrever tem um lado catártico e um lado reflexivo, racional. Até os surrealistas, aparentemente só catárticos, eram assim. A leitura de bons livros e a experiência de vida são essenciais para escrever um romance. Estudar o assunto também é ótimo.
LIVROS
Não tenho ânsia de publicar. Terminei meu primeiro romance (Relato de um certo Oriente) em 1986, começo de 1987. Só saiu em 1989. Antes de publicá-lo, foi lido pelos editores, alguns amigos e críticos. Eu tinha na cabeça várias ideias, mas percebi que tinha de procurar minha voz, “a musiquinha”, como disse Céline... Dois irmãos só foi publicado em 2000, 10 anos depois. O que escrevi partiu de um movimento de dentro para fora, tem a ver com a minha vida, com inquietações que surgem na memória. No Dois irmãos e no Cinzas do Norte foi um pouco angustiante evocar a destruição de Manaus. A cidade da infância é um espaço em ruínas. No fundo, tentei escrever sobre vidas arruinadas numa cidade que só existe na memória. As ruínas, com seus mitos e metáforas, são matérias da ficção..