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'Escrever é sair de si mesmo', afirma Milton Hatoum, homenageado na Fliaraxá

Escritor defende que a prática literária requer entrega e imaginação que transcendem a mera experiência empírica. Evento vai até domingo

Walter Sebastião

- Foto: Carlos Vieira/CB/D.A.Press

O amazonense Milton Hatoum, de 64 anos, é o homenageado do 5º Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), que ocorre até este domingo (18). Ele é romancista, tradutor, professor e considerado um dos grandes escritores vivos do Brasil. Descendente de libaneses, ensinou literatura na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

 

Escreveu quatro romances: Relato de um certo Oriente, Dois irmãos, Cinzas do Norte (esse último vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura e todos os três primeiros ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor romance) e Órfãos do Eldorado. Seus livros foram traduzidos em oito países, entre eles Itália, EUA, França, Espanha e outros – e já venderam, no Brasil, mais de 200 mil exemplares.

Milton Hatoum estará em Araxá neste sábado, no auditório da Fundação Cultural Calmon Barreto. Às 19h, conversa com o público em mesa-redonda com mediação de Ascânio Seleme. A homenagem ocorre um mês depois de outra, da Universidade Estadual do Amazonas, e dois dias antes da que vai receber da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), segunda-feira, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Em abril de 2017, receberá mais uma, no Festival Literário de Poços de Caldas.

“É bom ser homenageado vivo”, brinca. “Não por vaidade, mas poder encontrar as pessoas”, observa, irônico.

Depois de adaptado para o cinema (Órfãos do Eldorado, de Guilherme Coelho), Hatoum chega à televisão, em janeiro, com a minissérie Dois irmãos, dirigida por Luiz Fernando Carvalho. O escritor conta que até 2017 deve terminar dois romances, “independentes, mas que se complementam”, nos quais está trabalhando há oito anos.

 

Em entrevista ao Estado de Minas, revela que a paixão pela literatura convive com o encanto pelo ensino: “Uma das atividades humanas mais fascinantes é o compartilhamento do saber e do conhecimento. É aquela frase linda de Guimarães Rosa que diz: ‘Se é professor quando se aprende, não quando ensina’”. E até revela sonhar com um volume de poemas que vem guardando escondido.

O escritor não esconde sua desapovação com a repressão às manifestações “Fora, Temer”, que pôde presenciar em São Paulo. “Estava no Largo da Batata e vi coisas que não via desde os anos 1970. Estão querendo intimidar as manifestações de protesto, mas isso não funciona mais”, relata. A seguir, trechos da entrevista.


5º Festival Literário de Araxá (Fliaraxá)
Até 18 de setembro. Pátio da Fundação Cultural Calmon Barreto, Praça Arthur Bernardes, 10, Centro, Araxá. Informações: www.fliaraxa.com.br.

OBRA
O que escrevi foram ficções que carregam minhas experiências de leitura, de vida, minhas preocupações éticas e estéticas. Publiquei pouco. Literatura é, para mim, aventura da imaginação, do conhecimento e da linguagem, que nos convida a conhecer uma cultura e a confusa e imperfeita alma humana.

Romances como Coração das trevas ou Lorde Jim, de Joseph Conrad, ou os de Guimarães Rosa e Céline, não expressam apenas uma linguagem apurada, altamente sofisticada. Por trás das palavras e do esforço de estilo há uma reflexão crítica sobre o passado e a história, em viés oblíquo, mas com um sentido político latente.

ROMANCE
O romance indaga a todo momento a trajetória de uma vida e o seu destino. Não deixa de ser uma forma de resistência numa época em que há pouco espaço para a literatura e a filosofia. E há uma corrente ultraconservadora que pretende acabar com o pensamento crítico, com as ciências humanas. Nosso tempo privilegia a imagem banal, a comunicação rápida ou instantânea, a superficialidade, a celebridade efêmera, a vaidade quase doentia. Quando vejo pessoas irem às ruas para pedir o fim da democracia, fico pensando sobre a formação que tiveram. Se tivessem lido São Bernardo, Vidas secas, Raízes do Brasil ou um ensaio sobre a escravidão, não estariam nas ruas apoiando Bolsonaro e Cunha. Bom, depois de tanta desfaçatez, parece que esses apoiadores minguaram...

CRIAÇÃO
Sem nenhuma aderência à vida e até mesmo ao sofrimento do outro, é muito difícil construir narradores e personagens. Escrever ficção significa sair de si mesmo e inventar um microcosmo, um pequeno mundo paralelo, até certo ponto autônomo. Virgínia Woolf escreveu que é muito difícil retratar a si próprio, dizer a verdade sobre si mesmo e descobrir a si mesmo de tão perto.
Para ela, só Montaigne fez isso de verdade. Quando um lance da vida entra na ficção, já não se trata da experiência empírica, e sim de uma construção da linguagem. A literatura depende da força da imaginação, da invenção de narradores e personagens que transcendem a experiência empírica.

PRAZER
O movimento do desejo da escrita deita, ainda, raízes em um certo prazer. Em momentos de angústia começo a ler textos que admiro. Quando pressinto o cerco da angústia, leio poesia. Quer algo mais bonito que os poemas Aniversário, Amar, Os bens e o sangue, de Carlos Drummond? Ou qualquer poema de Claro enigma? A leitura também nos defende da angústia e das coisas que nos ameaçam. Até mesmo o mundo opressivo e angustiante da ficção de Kafka me dá prazer no momento da leitura, que é sempre uma aventura e uma descoberta de tantas coisas que estavam ou pareciam estar ocultas.

POLÍTICA
Literatura não deveria ter um sentido político direto, ostensivo. Ela encena um duplo movimento: do interior para o exterior e vice-versa, integrando a verdade interna do narrador e o tempo em que ele vive. Não procuro separar a dimensão subjetiva da histórica. Admiro livros que sondam a alma humana e lançam um olhar no tempo em que os personagens vivem. É muito difícil alcançar uma grande síntese, uma espécie de magma que envolve tudo: o amor e a morte em sua dimensão humana e metafísica, a geografia, os conflitos sociais, a história, os mitos, o impulso do novo na escrita... Refiro-me a um romance genial: Grande sertão: veredas. Mas essa grande síntese é um cometa que só raramente brilha no céu escuro.

POESIA
Os dois vícios da minha vida de leitor são reler Guimarães Rosa e Carlos Drummond. Agradeço ter nascido no Brasil, pois posso lê-los no original. A leitura da poesia é fundamental para um romancista. Publiquei um livrinho de poesia que, graças a Deus, não foi reimpresso, apesar da capa do livro e das fotos que estão nele serem lindas. Percebi que não seria poeta... Ou que não seria o poeta que queria ser. Tentei atenuar essa frustração quando escrevi meu primeiro romance... A linguagem é mais lírica e, de algum modo, tateia a poesia. O Dois irmãos tem epígrafe de Carlos Drummond. Poetas, tradutores e artistas são personagens dos meus livros.

ESCRITA
O desejo de escrever não depende da idade, mas do impulso do desejo, da entrega passional à linguagem. Escrevi muitas coisas que não foram publicadas. Rasguei tudo. Quando reli esses textos, não vi sentido em guardá-los. Nada mais humano do que o fracasso... Mas tiveram o papel de exercitar a escrita e indicar o primeiro movimento em direção à prosa. Escrever tem um lado catártico e um lado reflexivo, racional. Até os surrealistas, aparentemente só catárticos, eram assim. A leitura de bons livros e a experiência de vida são essenciais para escrever um romance. Estudar o assunto também é ótimo.

LIVROS
Não tenho ânsia de publicar. Terminei meu primeiro romance (Relato de um certo Oriente) em 1986, começo de 1987. Só saiu em 1989. Antes de publicá-lo, foi lido pelos editores, alguns amigos e críticos. Eu tinha na cabeça várias ideias, mas percebi que tinha de procurar minha voz, “a musiquinha”, como disse Céline... Dois irmãos só foi publicado em 2000, 10 anos depois. O que escrevi partiu de um movimento de dentro para fora, tem a ver com a minha vida, com inquietações que surgem na memória. No Dois irmãos e no Cinzas do Norte foi um pouco angustiante evocar a destruição de Manaus. A cidade da infância é um espaço em ruínas. No fundo, tentei escrever sobre vidas arruinadas numa cidade que só existe na memória. As ruínas, com seus mitos e metáforas, são matérias da ficção.

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