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O poder dos curiosos: curiosidade é tema de livro do argentino Alberto Manguel

Inspirado nas inquietações de Dante Alighieri, Alberto Manguel lança livro sobre a curiosidade, fonte do inconformismo. Demolidora de certezas, graças a ela o homem supera suas limitações

Todos os dias, o escritor argentino Alberto Manguel se rende a uma rotina que lhe alimenta o espírito: ler ao menos um capítulo de A divina comédia, poema de viés épico e teológico escrito por Dante Alighieri no século 14.

“Sempre há uma nova descoberta”, conta o autor, que, apesar da extrema proximidade com os clássicos, só decidiu ler integralmente a obra-prima italiana há 12 anos.
E foi essa descoberta que o incentivou a escrever Uma história natural da curiosidade, livro em que mapeia os textos que o inspiram como leitor. O ponto de partida são 17 questões propostas por Dante na Divina comédia.

Manguel é um autor de múltiplas vivências – nascido em Buenos Aires em 1948, viveu em Israel e no Taiti até se mudar, nos anos 1980, para Toronto, onde se tornou cidadão canadense.

Aprendeu a ler por volta dos 3 anos e nunca mais parou. Adolescente, leu em voz alta, durante anos, para Jorge Luis Borges, que ficara cego. Viveu em um presbitério construído no século 16, que comprou para instalar sua biblioteca de 30 mil livros, em um vilarejo medieval no Sul da França. Atualmente, é diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, mesmo cargo ocupado por Borges.

Quando decidiu que a curiosidade era tema para um livro?
A curiosidade como parte do ser humano é uma característica essencial que nos permite sobreviver para imaginar as experiências que nos constroem e nos possibilitam entender o mundo que contém nossa identidade. Não creio que seja apenas o tema desse livro, mas de toda a minha obra. Mas, depois de ler Dante, pensei em fazer uma espécie de cartografia do mundo intelectual dantesco por meio das perguntas que ele faz e que refletem nossa inquietação hoje.
A lista de 17 perguntas – que poderiam ser mais – reflete nosso inconformismo e dá forma a questões milenares.

A curiosidade implicaria ação transgressora?
Com certeza. Nossa sociedade está construída sobre afirmações. Nosso contexto social representa uma das regras que constroem a muralha simbólica do lugar onde podemos viver juntos sob uma certa coerência. O indivíduo, para que essa sociedade continue viva, tem de questioná-la. Se há leis, elas devem mudar ao longo do tempo. E é a curiosidade do homem que pode alterá-las. Desde sempre, desde que as muralhas das sociedades eram verdadeiras, reais, o indivíduo queria saber o que havia do lado de fora para comparar com o que dispunha dentro e que caracterizava sua forma de viver. A curiosidade permite incorporar algo que não é real graças à imaginação.

É a vontade de saber mais que possibilita, por exemplo, a descoberta de um novo planeta como o anunciado recentemente, não?

Sempre soubemos que nosso entendimento é limitado pelos sentidos, que reduzem o alcance da nossa busca. Mas, graças à nossa imaginação, podemos ver o que não está adiante, ouvir algo no que parece ser silencioso. Há campos imensos aos quais não temos acesso, mas construímos instrumentos para estender o alcance dos nossos sentidos. E a descoberta desse planeta é obviamente uma extensão dos nossos olhos. Marshall McLuhan, quando escreveu seu famoso livro O meio é a mensagem, já dizia que os instrumentos são uma extensão dos homens, ou seja, o carro é uma continuação das nossas pernas.

Em seu livro, o senhor promove uma interessante conexão entre a Antiguidade e o mundo contemporâneo, além de montar encontros originais como Kafka e Platão, ou Confúcio e o filósofo pré-colombiano Netzahualcóyotl.
Esquecemos que as definições temporais e espaciais são convenções que foram criadas para facilitar o pensamento da comunicação. No universo, não há tempo nem espaço.
Essas etiquetas são categorias que nos permitem viver neste mundo. Mas, acima delas, está a rede que comunica as distintas partes e fazem com que Platão responda às nossas inquietações atuais ou que encontremos referências a Alice no País das Maravilhas ou a Sêneca, Dante e Kafka em nossa vida cotidiana.

Vivemos em um mundo marcado pelas certezas, oferecidas pela comunicação e pela publicidade. Mesmo nas escolas, os alunos são educados a aceitar respostas e a não fazer perguntas. O que isso traz de prejuízo?

É um problema recorrente. No fim da Idade Média, o método de ensino, que era escolástico, afirmava que os conceitos clássicos, autoritários, eram os corretos e tinham de ser apreendidos pelo estudante para que ele descobrisse quais eram as opiniões válidas na sociedade. Só com o humanismo é que se começou a questionar esse sistema e a se discutir que a base do conhecimento autoritário é apenas uma base sobre a qual construímos os relacionamentos interiores. Essa é a diferença entre a literatura, que apresenta perguntas, e o dogma político religioso social, que apresenta certezas.

O que dizer do uso de religiões, como o islamismo, para fomentar guerras?
Esses extremismos existiram sempre. Hoje, ao ouvirmos falar do extremismo islâmico, nós nos esquecemos de que as religiões católica e protestante tiveram atos de extremismo muito mais pronunciados e durante muito mais séculos. O que nos chama a atenção hoje são os atos dos terroristas, mas nos esquecemos convenientemente de que a nossa própria história – sendo cristãos ou judeus – é marcada por atos extremos.

Como é trabalhar na Biblioteca Nacional da Argentina, função já exercida por Borges?
Fui nomeado no fim do ano passado, mas não pude aceitar até junho deste ano. Trabalhei à distância.
É uma tarefa difícil, mas excitante. É preciso transformar a biblioteca em um espaço funcional, que compartilhe suas riquezas. Quero fazer um acordo com a Biblioteca Nacional do Brasil. Sobre Borges, ele conferiu uma grande visibilidade à biblioteca, um local onde gostava de estar. (Ubiratan Brasil/Estadão Conteúdo)

UMA HISTÓRIA NATURAL DA CURIOSIDADE
» De Alberto Manguel
» Companhia das Letras
» 488 páginas
» R$ 74,90.