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Livro trata da produção de Clarice Lispector como cronista

Estudo de mestrado da professora Vivian Resende Jatobá foi publicado e ganhou as prateleiras; saiba mais

Severino Francisco
Segundo pesquisadora, Clarice Lispector tinha receio de se expor demais ao exercitar o gênero da crônica, ao qual se dedicou para garantir a sobrevivência - Foto: ARQUIVO ESTADO DE MINAS

A própria Clarice Lispector desdenhou das crônicas que publicou no Jornal do Brasil para garantir a sobrevivência. No entanto, logo Clarice inventou uma maneira singular de escrever os textos do gênero para jornal. E gostou tanto do resultado que publicou vários textos produzidos para jornal nos livros de ficção. É sobre esse trânsito rico, contraditório e dramático que a professora Vivian Resende Jatobá trata em Clarice Lispector e a descoberta do mundo (Ed. UnB), livro que teve origem em uma tese de mestrado para o Departamento de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

Vivian retoma a liberdade do gênero crônica, reconstitui os passos da escritora-jornalista, trata da exposição, da máscara e do diálogo com o leitor, interferindo na produção dos textos. Esse percurso revela que Clarice introduziu uma voz inovadora na tradição da crônica brasileira, marcada pela densidade poética e pela forma visceral do grito. Nesta entrevista, Vivian fala sobre a relevância dessa dimensão da obra clariciana, ainda a ser explorada pelos leitores comuns e pelos pesquisadores da literatura.

Rubem Braga, mestre do gênero, disse que não gostava das crônicas de Clarice. Como situar a singularidade de Clarice dentro da tradição do gênero crônica no Brasil?

Acho interessante que Clarice se sentia muito insegura ao ser convidada para escrever crônicas.
Isso se deve muito ao fato de ela ter escrito ficção. Mas, na condição de cronista, se expõe muito. Então, a singularidade da ficção se reflete na crônica. O Rubem Braga não tinha dado esse tratamento tão introspectivo.

Que diferenças existiriam, por exemplo, em relação à crônica de Rubem Braga?


A Clarice tinha bastante admiração pelo Rubem Braga, mas as temáticas e os olhares diferiam bastante. Porque ela sempre se entrega a uma introspecção com a qual Rubem Braga não trabalha, embora fosse um observador agudo do cotidano.

O que Clarice quis dizer ao afirmar que a crônica dela era um grito?

Acho que isso tem a ver com o fato de se sentir desconfortável na função cronista e de preferir a máscara da ficção. Mas a crônica exige a participação do autor, não disfarça a figura do autor. Transparece mais do que na ficção. Ela se via obrigada a falar de questões de personagens essenciais do cotidiano dela: o filho, a empregada, o cachorro.

Mas o grito também não está na ficção dela?

Sim, o grito está presente o tempo todo. Só que não consegue dissimular na crônica, que impõe mais transparência.

Como analisa o trabalho jornalístico de Clarice? É algo menor ou à altura de sua obra?

Acredito que é bem à altura da ficção, embora ela mesma não valorizasse esse trabalho. Clarice reproduzia o preconceito contra a produção de jornal como algo menor. Mas, quando a gente se dedica à crônica dela, constata o que está escondido na ficção. Até porque a crônica tem uma facilidade de linguagem que permite a aproximação com o leitor.

Em que medida o fato de escrever para o leitor de jornal interferiu na escrita de Clarice?

Isso é muito claro, algumas crônicas de Clarice eram direcionadas diretamente a um determinado leitor. E talvez seja isso que despertava maior incômodo.
Ela se sentia mais amada, o leitor era mais visível. Algumas crônicas são de reflexões sobre a consideração que recebia de leitores.

Clarice desdenhou a crônica como um gênero menor, a que ela se entregava apenas para garantir a sobrevivência. No entanto, alguns textos de crônica passaram a figurar em sua obra ficcional...

É isso que torna Clarice enigmática, você vê contos de Felicidade clandestina extraídos de textos publicados em jornal como crônicas. Na ficção, não existe isso. Passa a questionar se a figura do leitor estava aí. Ela tinha o receio de se expor demais. Ela quis permanecer um enigma.

Como analisa as crônicas que Clarice escreveu sobre Brasília?

O interessante é que ela sai um pouco do universo dela. Ela morava no Leme, no Rio de Janeiro. Sai um pouco desse lugar confortável dela para refletir sobre algo que era nebuloso na época. Brasília permitiu que trabalhasse com a dimensão do mistério, que é uma coisa cara a ela.
Bom, é interessante, porque cada um tem uma impressão singular. O texto não revela uma verdade universal, mas é uma impressão que fica sobre o que Brasília era quando estava fundada. Ela se identifica com a cidade a partir da dimensão enigmática.

É possível afirmar que Clarice inaugurou a vertente da crônica metafísica?

Eu não falei nada a respeito da metafísica. Mas posso falar da dimensão poética de recriação e ressignifcação de eventos cotidianos pouco promissores, nos quais ela garimpa significados maiores. Ela extrai o sublime do banal.

Há crônicas que só podem ser escritas pelo olhar da mulher. Como percebe essa dimensão nos textos de Clarice para jornal?

É interessante que ela teve colunas dedicadas ao mundo feminino e à beleza. Mas, ainda assim, ela não queria deixar que fosse uma coisa fútil. E assume também o lado da dimensão maternal, que tem o potencial de dialogar com uma faixa ampla de leitoras.

Clarice deixou herdeiros ou herdeiras na crônica brasileira?

Gosto de acompanhar vários cronistas: a Martha Medeiros, a Maria Ribeiro, o Fabrício Carpinejar, o Gregório Duvivier, mas não vejo essa pegada de transformar o banal em sublime. Existe uma preocupação política muito forte ou a preocupação com a carência afetiva. Não são temas propriamente claricianos. Ela ia além do banal.

Clarice Lispector e a descoberta do mundo
. De Vivian Resende Jatobá
. Editora UnB, 252 págs., R$ 50.