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Inhotim pode ser punido se realizar performance criada por Tunga com serpentes anestesiadas, afirma Ibama

'Vanguarda viperina', criada por Tunga, em 1985, é uma das atrações da programação especial dos 10 anos do instituto. O artista, falecido em junho, será o grande homenageado do evento

Mariana Peixoto
O Instituto Vital Brazil, que cedeu as cobras para a performance no Rio, em 1985, avalia se participará na reedição no Inhotim. Cobras são sedadas com gás carbônico por aproximadamente dois minutos - Foto: REPRODUÇÃO DO LIVRO TUNGA 'BARROCO DE LÍRIOS' / COSAC&NAIFY
Os 10 dias de comemoração dos 10 anos de abertura de Inhotim ao público, programados para o período de 1º a 11 de setembro, poderão ser desfalcados. Morto em 6 de junho, aos 64 anos, Tunga será homenageado pelo instituto, ao longo de três dias. No entanto, a realização de uma das performances está ameaçada, por causa da legislação ambiental.

Realizada pela primeira vez no Brasil em 1985, Vanguarda viperina utiliza três serpentes. Sedadas, elas são trançadas. A performance acompanha o destrançar das serpentes, à medida que vão despertando da sedação. E é a sedação que levou o debate para além da arte.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) afirma que, de acordo com a legislação, Vanguarda viperina não pode ser realizada. “Não há previsão legal para a realização do evento. Assim, todos os envolvidos na realização da referida performance, caso seja promovida, estarão sujeitos às penalidades dispostas na legislação vigente”, afirmou, em nota, ao Estado de Minas a seção Minas Gerais do órgão.

A Lei 9.605, de 1998, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, prevê detenção de seis meses a um ano e multa para aquele que “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente”.
O artigo 32 da mesma lei acrescenta que “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos pode gerar detenção de três meses a um ano e multa”.

Ouvido pela reportagem a respeito da objeção do Ibama, o Inhotim diz que mantém sua programação, com ressalvas. “É óbvio que, se qualquer tipo de questão legal estiver comprometida em relação à performance, vamos avaliar se faremos ou não. Se concluirmos que existe infração, não faremos”, afirma Antônio Grassi, diretor-executivo do centro de arte contemporânea.

Para a realização da performance, o Inhotim vem ancorado pelo Instituto Vital Brazil, parceiro do ateliê de Tunga, Agnut. A primeira vez que Vanguarda viperina foi realizada, há 31 anos, foi em área do próprio laboratório carioca. Na próxima quarta-feira, o comitê de ética do Vital Brazil vai se reunir para definir se aprova ou não a reedição da performance. “É um colegiado criado por pesquisadores, em que um dos membros é inclusive da Associação Protetora dos Animais. Caso o colegiado aprove por maioria simples, participaremos”, afirma Rafael Cisne, diretor científico do Vital Brazil.

De acordo com ele, a performance seria acompanhada por um biólogo, um veterinário e um técnico do instituto. A anestesia seria realizada por CO2 (gás carbônico), “a única metodologia aceita hoje em dia, que não gera nenhuma lesão ao animal. Ele rapidamente retorna à atividade”. As serpentes, segundo Cisne, ficariam anestesiadas por 1,5 a dois minutos. Os répteis utilizados na performance seriam do próprio Vital Brazil, que conta com um serpentário com 850 animais.

Vanguarda viperina foi apresentada quatro vezes até hoje. Duas no Brasil (em 1985, no Rio, e no ano seguinte, no Mato Grosso) e outras duas nos Estados Unidos (em 1993, em Los Angeles, e em 1995, em Nova York).
- Foto: A performance Vanguarda viperina foi realizada quatro vezes, sendo duas no Brasil, na década de 1980, e duas nos EUA (acima), na década de 1990

ARANHAS Não foi a única performance em que Tunga trabalhou com animais. Em 1989, realizou Maquiagem, que explorava o percurso de aranhas e cobras.
Elas foram colocadas em um cercado que tinha o chão coberto por um pó na cor telha. O caminho feito pelos animais criou um desenho. Em 2004, em São Paulo, e dois anos mais tarde, no Rio, promoveu a chamada Laminadas almas. Para discutir a metamorfose, o artista trabalhou com milhares de moscas e rãs que “atuavam” junto a bailarinos e artistas.

A trança é recorrente na obra de Tunga. A fotografia das serpentes trançadas na performance de 1985 está hoje exposta na Galeria Psicoativa, em Inhotim. A imagem é tão forte que também foi utilizada na capa de seu livro, Barroco de lírios (1997), publicação que inaugurou a editora Cosac & Naify.

Suas obras costumam se referir umas às outras. “Um sempre leva ao outro, como se entre eles existisse um ímã”, afirmou o artista. Prova disso é o vídeo O nervo de prata (1986), realizado em parceria com Arthur Omar. Disponível no YouTube, o trabalho mostra como uma obra repercute em outra (há imagens de Vanguarda viperina no filme de 20 minutos).

Tunga é o único artista a contar com duas galerias em Inhotim. A primeira delas, True rouge, foi também a primeira obra do centro de arte contemporânea.
É uma visitação noturna a ela que abre, em 3 de setembro, a programação dedicada ao artista pernambucano. Na mesma galeria, no dia 8, a coreógrafa Lia Rodrigues, outra parceira de Tunga, recria a performance que inaugurou True rouge. Nela, homens e mulheres nus espalham gelatina vermelha por seus corpos, pelo chão e na própria obra, fazendo o material transbordar de garrafas transparentes.

Outras ações estão programadas para a homenagem, como a performance Make-up coincidence, na Galeria Psicoativa (no dia 9), em que um casal nu vai maquiar as esculturas de A prole do bebê (2002). Monitores de Inhotim atualmente estudam cinco narrativas criadas por ele. A ideia é que, no dia 8, eles leiam e distribuam para o público histórias como as das gêmeas que nasceram unidas pelo cabelo (base da performance Xifópagas capilares, de 1984).

ARRUMAR A CASA “O trabalho do Tunga vai se espalhando em várias direções. É uma obra que tem um parentesco com a ciência e a poesia. Durante muito tempo, a performance foi a marca dele. De uns 10, 15 anos para cá, é que ele foi dando um pouco mais de sedimentação para as obras físicas. O interessante é que elas (as obras físicas) aparecem com uma sombra de performance”, comenta Fernando César Sant’Anna, assistente do artista e hoje um dos responsáveis pelo ateliê Agnut, na Barra da Tijuca.

“Tunga, assim como outros artistas contemporâneos, se dedicou a ver coisas que não vemos. A performance das cobras é muito emblemática e simples. O público, ao vê-las se destrançando, se desfazendo, vai conhecer o caminho inverso, que é uma nova forma de ver”, diz Sant’Anna.

Segundo ele, assim que ficou sabendo que sofria de câncer, o artista “não queria conversar sobre nada que tivesse a ver com a morte”. “Ele se dedicou totalmente ao tratamento, tinha esperança de que ia ficar bom. Então, não deixou nada definido.”

A equipe de 10 pessoas que trabalha hoje no ateliê próximo à residência de Tunga se dedica a dois projetos: a homenagem em Inhotim e a exposição que será aberta em outubro, na galeria Millan, em São Paulo. Na mostra paulista será apresentada uma série inédita, Phanografos, que reúne caixas espelhadas com vários materiais e Morfológicas, com trabalhos mais escultóricos. Haverá ainda a performance sonora Delivered invoice.

Depois, a intenção é organizar o legado do artista. “O Tunga tem obras espalhadas pelo mundo todo, três ou quatro galerias que têm muitas peças dele. Trabalhamos muito, mas ficou muita bagunça para trás. Agora temos que arrumar a casa, o que deve durar pelo menos cinco anos”, estima Sant’Anna..