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PERFORMANCE

Irreverência dos infernos

O professor Moisés Augusto e a atriz Carlandréia Ribeiro recordam o Capetalismo, ação teatral que misturava sátira política e percorria as ruas de BH nas décadas de 1980 e 1990

Personagem Capetalismo participa de manifestação contra a privatização do ensino, em maio 1988 - Foto: Acervo Sindicato dos Bancários de BH e Região

 

Nos idos de 1988, as ruas do Centro de Belo Horizonte passaram a ser assombradas por um famoso personagem da cultura popular e da tradição religiosa: o próprio Sem Nome. O Coisa Ruim travestido de sátira social andava pela cidade pregando a sua palavra, fugindo da polícia e despertando a curiosidade dos populares. Com collant, chifres e tridente vermelhos, capa preta, cauda de ponta com formato de flecha e uma mala preta com os dizeres FMI, Moisés Augusto Gonçalves era o Capetalismo, para terror das beatas e dos seguranças das agências bancárias.

O personagem que agitou os passantes – alguns pela curiosidade, outros pelo assombro – foi concebido em “um momento privilegiado da história do país, na transição da ditadura para o constitucionalismo liberal”, recorda seu intérprete. As ruas eram palco das reivindicações dos movimentos sociais por democracia e direitos, no contexto de uma profunda crise social e política do então governo José Sarney. Suas performances, variavam entre o eloquente e o burlesco, atraindo uma plateia que se aglomerava espontaneamente. O objetivo era causar incômodo, tanto que sua indumentária raramente era lavada.

Foi no Sindicato dos Bancários de BH e Região, mais especificamente no departamento cultural da entidade, que o alegórico Capetalismo foi concebido. A companheira de cena, Carlandréia Ribeiro Nascimento, lembra que as atividades começaram quando a chapa da Central Única dos Trabalhadores (CUT) saiu vencedora das eleições sindicais de então. Na lembrança dos participantes, a proposta de ação cultural tornou-se referência para outros estados brasileiros.

“Aparecíamos de assalto nos bancos”, brinca Carlandréia.

Surpreendendo as pessoas que estavam dentro das agências, a trupe, em performances rápidas, questionava a exploração do trabalhador, seja o que estava na fila ou atrás do balcão do caixa. As apresentações eram curtas, quase sempre interrompidas. “Mas quando nos tiravam de lá, o recado já estava dado”, diz a atriz.

Com o Capetalismo, Moisés Augusto saía pelas ruas três vezes por semana, frequência que aumentava para cinco quando os bancários estavam em greve. Além de suas apresentações solo, o ator dividia cena com Jacó do Nascimento, que usava pernas de pau, cartola, charuto e se vestia com um fraque preto, personificando os banqueiros, e com Carlandréia, que se vestia de palhaça, usando roupas largas e nariz vermelho, e representava a classe trabalhadora. “A gente trabalhava muito com improviso, mas sempre tinha um assunto, a conjuntura política. Questões que tocavam os trabalhadores eram os temas que nós levávamos para as ruas”, diz.

Durante o conturbado governo José Sarney, encenações questionavam decisões tomadas em Brasília - Foto: Acervo Sindicato dos Bancários de BH e Região 

Além da atuação na capital, o grupo realizava happenings no interior de Minas. Em uma viagem para Sete Lagoas, Carlandréia foi detida sob a acusação de perturbação da ordem pública. Moisés Augusto também colecionava problemas com a polícia. De suas detenções, a mais recente ocorreu em janeiro de 1996, quando interpretava o Capetalismo em frente ao templo da Igreja Universal do Reino de Deus. O ator lembra que, quando foi levado para a delegacia, os policiais acharam graça ao se verem obrigados a ligar para o “advogado do diabo” e até quiseram tirar fotos com o insuspeito personagem.

O Capetalismo é uma figura ainda mais curiosa quando se conhece a biografia de seu intérprete: Moisés teve educação católica, chegou a ser frei franciscano. Olhando para trás, acredita que “a formação religiosa foi fundamental para ressignificar o mito do Capeta”.

De lá para cá, a vida desses performers de rua se modificou. O rapaz que antes vestia a pele do Capetalismo hoje é professor de ciências sociais em uma universidade católica, a PUC-Minas, e tem cargo de diretor na Associação dos Docentes da instituição em Minas. Ele entende que, embora tenha aposentado seu personagem em 1996, “o Capetalismo como sistema está aí”.

Se já se imaginou outra vez na pele do Coisa Ruim? “Já fiz minha parte”, diz. Além do mais, acredita “na capacidade de resistência e criatividade do povo brasileiro”. 

Com intenção de incomodar e provocar, os atores saíam pela cidade de três a cinco vezes por semana - Foto: Acervo Sindicato dos Bancários de BH e Região

Como ator, Moisés também deu vida aos personagens O Velho e Maria Miséria e a uma fofoqueira chamada Dinda, este último durante o governo Collor de Mello (1990-1992). A crítica social e o viés político sempre estiveram presentes em suas performances. É desse tipo de ação cultural que Carlandréia sente falta neste momento delicado que o país atravessa.

“Penso que, na atual conjuntura, no meio de um processo de golpe de Estado, de um processo que deixa uma mancha tenebrosa na história do país, e quando o país se conforma, salvo alguns focos de resistência, esse tipo de ação lúdica seria importantíssima”, diz ela, que também integrava a banda Ali-é-nada, outro projeto do Departamento de Cultura do Sindicato dos Bancários daquela época. Como o nome sugere, as apresentações, sempre em locais públicos, eram calcadas pela música de protesto.

Carlandréia seguiu carreira como atriz e hoje está integra o espetáculo Memórias de Bitita: o coração que não silenciou. Ela lamenta o fato de o Sindicato dos Bancários de BH e Região ter aberto mão de seu departamento cultural na véspera dos anos 2000. “Avalio como um grande erro”, diz. Na avaliação de Carlandréia, hoje existe o risco de um performer que se exponha como eles faziam nas décadas de 1980 e 1990 ser rechaçado pela população, dado o contexto de polarização política. Acredita, no entanto, que “é preciso provocar o debate” e que este é o momento para “esclarecer a população, provocar a indignação”. Afinal, “está tudo muito quieto”, opina. 


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