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Irmãos transformam objetos do dia a dia em móveis inusitados e sofisticados

Irmãos Campana mostram para o mundo a inventividade brasileira e revolucionam o design com suas criações

Humberto (E) e Fernando Campana em seu estúdio, em São Paulo - Foto: Miguel Schincariol/afp


Ninguém havia pensado antes em uma poltrona fabricada com ursos de pelúcia ou com centenas de metros de corda entrelaçada até que Humberto e Fernando entraram no design com sua proposta original e desafiadora que grita para o mundo: “Isto é Brasil”. Conhecidos como Irmãos Campana, são responsáveis pela criação de um vasto universo de objetos singulares que revolucionaram o design.

A luz penetra no ateliê destes criadores mundialmente reconhecidos em um bairro central de São Paulo. São dois amplos galpões onde, em uma manhã de julho, a dupla abriu as portas para mostrar o seu trabalho enquanto uma dúzia de artesãos, costureiras, arquitetos e assistentes costurava objetos em couro, escovam peles de carneiro e ajustam detalhes de um móvel ou digitam em um computador. “Isso aqui é um laboratório”, descreve Humberto Campana, o mais velho dos irmãos, com 63 anos. “Estamos sempre buscando novas formas de expressão”, acrescenta.

Um ponto-chave do trabalho desta dupla é o uso de materiais e objetos que, tirados de sua função tradicional, são reutilizados para dar vida a móveis extravagantes como uma poltrona de bonecas de pano sobrepostas, um sofá de papelão, uma cadeira feita com plástico de embalagens ou uma cama coberta por longas fibras naturais.

Para eles, é um “design de emergência, espontâneo”, que representa um “saber fazer” brasileiro, disse o irmão mais novo, Fernando, de 55 anos. É um processo de criação que imita “o lugar de abrigo, como as pessoas constroem suas casas a partir de objetos encontrados na rua”. “O que o design brasileiro pode oferecer ao mundo é o improviso, mas bem feito, onde transforma o material de uma função para outra e confere um uso cotidiano efetivo”, aprofunda-se Fernando.

Os Campana fogem de convenções como “tudo tem que ser de certa maneira ergonômico, funcional, branco ou preto, rígido”, assinala Humberto, referindo-se a grandes escolas de design como a italiana ou escandinava. “Eu disse não, o Brasil tem riqueza cultural é um país muito grande, um país jovem, é muito mais que linhas retas.
Aqui as cidades se rendem à natureza”, sustenta. O fofo sofá Boa, que imita uma enorme e curvilínea cobra, ou a cadeira de formas irregulares Coral, como os recifes da costa brasileira, expressam essa preponderância da natureza no trabalho dos irmãos.

INCONFORMADOS Os Campana exibiram suas peças em todo o mundo, da África do Sul ao Japão, passando por Alemanha, México e Israel. Elas fazem parte das coleções de grandes museus como o de Arte Moderna de Nova York (MoMA), o Georges Pompidou de Paris ou o Vitra Design alemão. Juntos adentraram o mercado de moda, design de interior, arquitetura e paisagismo. Seus móveis são vendidos em lojas requintadas em várias cidades.

Nenhum dos dois tem formação em design: Humberto estudou direito e Fernando, arquitetura, mas se juntaram no fim de 1983 quando o primeiro havia deixado as leis para fabricar pequenos objetos. Sua primeira exposição foi realizada em 1989 e se chamava Desconfortáveis, apresentando na entrada que seu caminho tinha pouco de convencional. “Não queríamos fórmulas fáceis”, explica Fernando. “Mas afirmar que somos ‘radicais’ é muito pesado, é melhor dizer que somos inconformados.”

O ano de 1993 marcou a carreira dos irmãos: 500 metros de corda vermelha estavam esquecidos em um rolo debaixo de uma mesa, até que pensaram que isso poderia se transformar em uma cadeira. E assim nasceu um dos sucessos dos Irmãos Campana, a famosa Poltrona vermelha, que é formada por essa corda cuidadosamente entrelaçada sobre uma estrutura metálica como a forma de um ninho. O resultado é uma cadeira de linhas curvas, de formas caóticas, orgânicas, assim como eles querem representar o Brasil.

Contam que muitas pessoas riram dessa ideia, mas em 1998 a Vermelha abriu-lhes as portas do mundo quando a empresa italiana de design de alto nível, Edra, começou a produzi-la e comercializá-la depois que o diretor criativo Massimo Morozzi os “descobriu”. “Essa cadeira é nossa homenagem ao caos. E foi um sucesso, graças a ela nós ficamos mundialmente conhecidos”, contou Humberto.

Poltrona da série Estrela, feita a partir da junção de pequenas rodas - Foto: Dmais/Divulgação

“O design é político”


Desde o início da carreira, os Campana já refletiram sobre a reciclagem de materiais e a produção artesanal dos objetos. Com o passar dos anos, encontrariam esse equilíbrio que faz com que a sua obra seja tão universal e tão brasileira.
“A ideia dos projetos sempre nasce dos materiais. O grande desafio é transformar um material em outra coisa. É como dizer ‘como não pensei em fazer isso antes?’. Acredito que esse seja nosso trabalho, sempre tentamos fazer isso, olhar para o banal. Mas transformar o banal em algo sofisticado”, explica Humberto.

E a partir dessa ideia, jacarés de pelúcia verde se transformaram em poltronas e pequenos pedaços de madeira compuseram a cadeira Favela, assim como os brasileiros menos favorecidos ao fazer suas precárias casas nos morros, uma em cima da outra.

Ao longo de três décadas de trabalho, buscaram a colaboração de pequenas cooperativas e artesãos na tentativa de resgatar tradições. No momento em que o Brasil vive uma de suas piores crises em décadas, os Irmãos Campana consideram que o design também tem uma vertente política. “E como reagiram as próprias costureiras e artesãos a essa transformação? Nem sempre é um processo fácil”, comenta Humberto.

No início, há desconfiança e incredulidade com estes “artistas”, mas os designers estão convencidos de que esse caminho pode transformar não só um jogo de crianças em um assento-escultura, como também conceder valor e reconhecimento ao trabalho de um homem que manipula o bronze ou de uma mulher que borda com fios coloridos. Novas funções, novas vidas. “Uma mudança de sentido ao que sempre foi feito igual”, explica Humberto. “A grande beleza é poder transformar”, insiste o mais velho dos Campana.
(Natalia Ramos/AFP)

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