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'O ladrão de casaca' reúne as primeiras histórias e façanhas de Arsène Lupin

Livro retrata a dicotomia entre o velho e o novo na França do início do século 20

Valf

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A situação era bem clara. Arsène Lupin, que, por ironia do destino, havia se tornado a vítima e sido roubado, teria a qualquer custo que recobrar sua carteira. Dentro dela, uma série de documentos, como o nome de correspondentes e planos de futuros roubos. O larápio com a carteira de Lupin se encontrava em um trem, rumo à estação de Montérolier-Buchy, onde, chegando, poderia fazer a baldeação para outros quatro destinos, e assim desaparecer. Arsène Lupin teria que correr como nunca contra o tempo. Em seu carro, um Moreau-Lepton de 35 cavalos, fazia contas entre a distância da estação e o horário previsto da chegada do trem e seguia firme, pressionando seu pé direito até o assoalho do bólido. Em uma bela passagem do livro, o autor descreve a interação da máquina com o protagonista de maneira quase simbiótica, mostrando suas respostas mecânicas ao propósito do condutor e como, após emparelhar e travar uma feroz e vertiginosa batalha contra a locomotiva, Lupin vence o duelo e chega à frente. Ele estava a 72km/h.

Arsène Lupin, o ladrão de casaca compila as primeiras nove histórias do célebre ladrão francês.

Originalmente publicadas na revista Je sais tout entre os anos de 1905 e 1907, Lupin foi uma encomenda do editor da revista, Pierre Lafitte, ao amigo, escritor e jornalista Maurice Leblanc (1864-1941). O personagem deveria ser, de certa forma, uma refinada versão francesa, misto da perspicácia de Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, e do ladrão inglês A. J. Raffles, criado pelo cunhado de Doyle, E. W. Hornung. A princípio concebido como história única, o êxito fez com que Leblanc seguisse adiante com as aventuras de Lupin, o que renderia mais de 20 livros, quatro peças teatrais e vários filmes.

Um anti-herói requintado e audacioso, mestre na arte do disfarce e lutador de artes marciais, Lupin utiliza seus recursos de planejamento, sedução e raciocínio como principais ferramentas para aplicar seus golpes. Bon vivant, além do dinheiro busca notoriedade. Por vezes, doa o fruto de seus furtos. Não, claro, sem antes mandar aos jornais a resenha de suas façanhas e a demonstração de sua benevolência.

Sem oferecer detalhes sobre as descrições físicas de Lupin, o escritor traz o leitor para próximo do desconforto das vítimas, mantendo o clima de mistério com um interessante recurso narrativo. As histórias são narradas tanto pelo autor quanto por um cronista ou mesmo pelo próprio Lupin. Em alternância, esse artifício faz com que as certezas que o leitor acredita ter, não se concretizem. Confiante ao máximo em si mesmo, o protagonista chega a anunciar por cartas a intenção de seus roubos.
Curiosamente, em uma de suas histórias, é justamente uma dessas cartas que faz com que ocorra o primeiro encontro com um inusitado personagem que seria mais tarde integrado ao universo literário de Lupin. O cultuado Sherlock Holmes já havia sido citado nas primeiras estórias do gatuno francês. Contudo, Conan Doyle não aprovou tal situação. Não havia gostado nada de sua maior criação aparecer como antagonista em outra obra. Leblanc, que até então não havia lido nada do trabalho de Doyle e só conhecia as principais características de seu personagem, resolve fazer uma drástica mudança. Nascia assim, com os mesmos atributos e algumas letras trocadas, o detetive inglês Herlock Sholmes.

Filho da virada dos séculos 19 e 20, Lupin habita um curioso e efervescente cenário descrito por Leblanc. As mudanças ocorriam de maneira cada vez maior, com os resquícios de uma época passada dando lugar aos ventos da modernidade. A dicotomia novo/antigo permeia a obra. A ambientação divide espaço por entre vielas e requintados palacetes. Castelos seculares com suas passagens secretas e pesadas cortinas de veludo emolduram o opulento estilo de vida da aristocracia parisiense em decadência.
Mas é o novo, neste princípio de século, que fascina. O veloz carro vence em batalha a centenária locomotiva a vapor. A máquina fotográfica, em dimensões diminutas para a época, faz parte do cotidiano. O telégrafo sem fio, de maneira misteriosamente insondável, consegue enviar uma mensagem para um navio no meio do Oceano Atlântico e, por pouco, não entrega o disfarce de Lupin. Maurice Leblanc, de forma apaixonada, parece se render a isto tudo e constrói um libelo contra uma burguesia embolorada, vítima preferida de quem chegou a ser chamado de Robin Hood da Belle Époque.

O ladrão de casaca – As primeiras aventuras de Arsène Lupin

De Maurice Leblanc
Zahar
272 páginas
R$ 29,90 (livro) e R$ 14,90 (e-book)

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