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Com 15 anos de atividade em SP, Cooperifa promove saraus e espalha seu exemplo para outras cidades

Saraus têm servido como importante ação de cidadania

Sandra Kiefer
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´Vira-latas dos versos, jogador de várzea da literatura, poeta da periferia. Pouco importa o rótulo que embale as palavras de melhor qualidade que vêm sendo oferecidas gratuitamente todas as quartas-feiras, desde 2000, pelo escritor Sérgio Vaz e seus convidados no Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa). Em torno de um microfone, ele reúne cerca de 300 pessoas para ouvir e falar livremente de poesia no Bar do Zé Batidão, espaço que pertencia ao pai dele em Taboão da Serra, na periferia da Grande São Paulo. “Seja negro, branco, asiático, qualquer um pode se apresentar no sarau. Ontem (na semana passada), só de poetas inscritos tivemos 80. Tivemos escolas presentes, teve gente que alugou van e veio de uma favela da Zona Norte e também pessoas de classe média. Esses dias, o prefeito Haddad esteve lá para assistir”, explica o poeta e agitador cultural, em entrevista ao Pensar.

Entre 22 e 25 de agosto, Sérgio Vaz trará um pouco da proposta do sarau literário a escolas públicas da periferia de Belo Horizonte, que estão em processo de seleção para participar de um projeto de extensão desenvolvido pelo Sesc Palladium, de Belo Horizonte. Nessa mesma casa, no dia 26 do mês que vem, o poeta marginal fará um bate-papo às 10h, e outro às 19h30.
Ambos serão abertos ao público. “Vou barbarizar BH, bagunçar o coreto de segunda a sexta-feira na cidade”, brinca Sérgio Vaz ao telefone. Ele, que há três anos usa a poesia nas escolas de São Paulo como arma contra a violência, emenda: “Minha ideia sempre foi popularizar a literatura, que não pode mais ser o pão do privilégio”.

Mais que poeta, Sérgio Vaz é um ativista das palavras, que vivencia o refrão do “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. “Minha arrogância é tentar ser feliz através do outro. Quando vou em uma escola levar meu projeto ‘Poesia contra a violência’, vejo 300 alunos sentados diante de mim e eles dizem: ‘Obrigado, Sérgio Vaz, por você ter vindo conversar com a gente aqui na favela’. Eles não fazem ideia do quanto eu precisava estar ali. E ainda me agradecem (risos)”, diz ele, que acredita no poder transformador da literatura. “Estou armado com o livro na mão”, reforça, em documentário disponível na internet sobre a Cooperifa, onde conta que no início do sarau comunitário havia cerca de 15 pessoas, incluindo ele, o Pezão e familiares, até ligar e ameaçar quem não fosse regularmente ao encontro semanal: “Hoje, os olhares estão voltados para a periferia”.

Nascido em Ladainha, interior de Minas, mas criado desde cedo em São Paulo, Sérgio Vaz conta que, como todo garoto da periferia, queria ser jogador de futebol e achava que poema era coisa de gente fresca até ser tocado pelas letras de canções da MPB dos anos 1970 que pregavam contra a ditadura. Mas qual é a diferença entre as composições da MPB e os personagens de Jorge Amado para essa produção cultural da periferia? “Nossa literatura não fala dos pobres, ela fala com os pobres. Ela não fala dos negros, ela fala com os negros. A literatura periférica praticamente elimina o atravessador. Agora, quem conta nossa literatura somos nós. Pode ter menos crase, menos ponto e vírgula, mas é a nossa literatura, é a literatura que nos representa”, diferenciou.

A antropóloga Érica Peçanha defendeu tese de mestrado na Universidade de São Paulo (USP) sobre a Cooperifa, com pesquisas sobre apropriação do termo literatura marginal por escritores da periferia e as estratégias de produção e consumo cultural na periferia paulistana a partir da primeira década de atuação do Sarau da Cooperifa.
Em seu trabalho, afirma que “outras expressões, como literatura divergente, literatura suburbana e litera-rua também ganharam ecos entre os autores, bem como os termos literatura hip-hop, literatura de testemunho, literatura engajada e literatura da violência nomeiam a interpretação de alguns estudiosos”. Para ela, “são diferentes categorias, por vezes tomadas como sinônimos, ora dotadas de uma variedade de significados, obras e autores a elas associados, mas que revelam um esforço de refletir sobre o fenômeno em curso que aparece como grande novidade dos últimos tempos: a produção cultural (não apenas literária) com a marca da periferia”.

Em entrevista, a pesquisadora conta que acompanha a trajetória de Sérgio Vaz desde 2004, tendo tematizado sua biografia, atuação e produção tanto no mestrado quanto no doutorado: “Assim, ao se refletir sobre periferia nos dias atuais, é importante ponderar que o termo pode remeter a conjunturas diversificadas nos níveis conceitual e empírico, além de mobilizar múltiplas representações sociais, práticas e identidades. O que parece relevante, contudo, é a sua pertinência para se referir a certa realidade que ainda concentra a população marginalizada econômica, racial e socialmente, e que apresenta restrição ao exercício da cidadania, menor acesso a equipamentos e serviços públicos, maior percurso para o trabalho e de vulnerabilidade a riscos ambientais quando comparados a bairros historicamente tidos como centrais ou nobres”.

“É nóis no microfone”, avisa Sérgio Vaz no Sarau da Cooperifa, que abre inscrição para quem quiser chegar, dar o nome e falar poesia diante do público. “A única restrição será o tamanho, restrito a uma lauda, lauda e meia, para não cansar”, explica. “Precisa tomar cuidado para não deixar de ser literatura e começar a ser assembleia de bairro, mas, com o tempo, a poesia foi consertando o desabafo. Você pode xingar quem quiser, mas tem de ser em forma de poema”, diz Vaz, convidado este ano a se apresentar na off-Flip, a versão paralela da Festa Literária de Paraty, no Rio de Janeiro.

Aos 52 anos, Sérgio Vaz está lançando em Belo Horizonte seu sexto livro – Flores de alvenaria –, publicado por uma editora de grande porte, a Global, mas com o selo Literatura Periférica. “Meu livro Flores de alvenaria é uma homenagem a pessoas que moram em casas de alvenaria. Nunca morei em um barraco, mas é como se eu morasse, meu coração também é de madeira”, ressalva o escritor, que “fala” sobre violência policial, racismo e fome em pleno século 21. “Quem é que vai falar disso? Só quem sofre na pele.”

Na literatura periférica, as palavras precisam “falar” ao microfone, berrar nos megafones, chorar escondido de raiva ou, se tiver coragem, gritar a revolta em público. Para o escritor, é um processo em construção, assim como as pessoas estão se construindo como escritores e leitores.
“Só que a nossa literatura, a nossa poesia periférica tem a ver com gente, o livro é menos importante do que as pessoas. Ele tem a ver com cidadania, não é a arte pela arte. A gente ainda não consegue fazer a arte pela arte porque temos feridas abertas que precisamos cicatrizar. É uma coisa muito louca: nós vamos construindo poemas e os poemas vão construindo as pessoas”.

Lição para Belo Horizonte

“Sérgio (Vaz) meio que apadrinhou nosso Coletivoz”, diz Rogério Coelho, que reconhece, com certo brilho de orgulho, ter seguido a inspiração da Cooperifa para lançar, em 2008, um dos primeiros saraus comunitários de poesia com configuração permanente surgidos em Belo Horizonte. Nos dois primeiros anos, o Coletivoz importou o formato da Cooperifa, passando a funcionar inclusive no espaço de um bar do pai de Rogério Coelho, no Bairro Independência, na região do Barreiro.

Já atuantes no Bairro Independência com atividades culturais ligadas ao teatro e circo, Rogério Coelho e os amigos Jessé Duarte e Karla Figueirôa foram até o sarau do Bar do Zé Batidão, em São Paulo, para conhecer de perto o projeto do Cooperifa. Já tinham a intenção de reproduzir o modelo em BH. Apesar de ter importado da Cooperifa “seus moldes básicos (encontros semanais, microfone aberto, lista de inscrição dos interessados em recitar, lançamento da produção cultural da periferia), estrategicamente, o grupo foi-se adaptando e agregando formatos que extrapolaram o início”, descreve Coelho na tese de mestrado que pretende defender na Escola de Belas-Artes, este ano.

Embora não tenha conseguido ter a mesma constância da Cooperifa em São Paulo – há 15 anos no mesmo lugar –, o Coletivoz motivou o surgimento de um importante movimento de saraus literários em BH, não apenas na periferia da cidade, como também no Centro. “Hoje, já devemos ser pelo menos uns 10 grupos. Penso que nossa oposição ao Centro vem não somente como local geográfico, mas do Centro como modelo a ser seguido de cultura, daquilo que aparece nas grandes feiras de livros, nos maiores circuitos literários. Nossa produção está à margem desses circuitos”, compara Coelho, que diz lidar com temas marginais como racismo, exclusão social e violência.

Na tese, ainda em elaboração, Coelho tenta ressaltar que a produção cultural periférica não se limita à literatura ou à poesia ou ao hip-hop e que, mesmo essas formas ditas por meio da palavra, vão contar com forte viés de dramaturgia, ao ser (re)apresentadas nos saraus literários, especialmente nas periferias. “Em um shopping center/Chamaram-me de negra/E sou eu que limpo sua casa,/Os meus filhos estudam juntos aos seus//Sou negra sim!/E porque não”. Para ilustrar seu argumento, o ativista do Coletivoz cita esse trecho do poema de Katia de Sena, mulher de 52 anos e frequentadora do sarau. “Kátia fez o poema há 20 anos e como o apresenta – sua representação enérgica e aos prantos – revela uma resposta; uma afronta contra o preconceito no requerimento de igualdade”, explica.

Entre o público participante, continua o mestrando, “podemos encontrar os poetas que se revezam no microfone quando são chamados a recitar, organizados numa lista feita previamente; simpatizantes da poesia, frequentadores habituais do bar, professores acompanhados de turmas de alunos das escolas da região, entre tantos outros interessados”.

Em Belo Horizonte e região metropolitana, pelo menos 10 saraus têm como princípio a regularidade e continuidade dos encontros. Além do Coletivoz (Barreiro), estão listados: Sarau Comum (Santa Efigênia), Sarau Vira Latas (praças e espaços abertos de Belo Horizonte), Nosso Sarau (Sarzedo), Sarau Sarau (Betim), Apoema (Contagem), Sarau das Cachorras (Lagoinha – BH), Sarau das Lanternas (região da Pampulha – BH), Goma (Edifício Maleta – BH), Sexta Poética (UEMG – Ibirité), Sarau Cabeça Ativa (Viaduto das Artes – Barreiro) e Sarau Terra Firme (Ibirité), entre outros.

TRECHOS DE FLORES DE ALVENARIA


Na Fundação Casa...

- Quem gosta de poesia?
- Ninguém, senhor.
Aí recitei Negro drama dos Racionais.
- Senhor, isso é poesia?
- É.
- Então nóis gosta.
É isso. Todo mundo gosta de poesia. Só não sabe que gosta.

***

Maria fodida


Maria D’Ajuda nunca soube o que eram livros, mas sua vida página por página daria uma coleção de romances sujos.

De capa dura passou a vida a ferro frio e de mão em mão, mas ninguém sequer sabia se aquecia o seu coração.

De peito mole amamentou os bastardos perdidos em sua cama e desde sempre chorou esse leite coalho derramado.

Puta desalmada desalmou todas as almas penadas que assombraram seu colchão.

Como fodia essa fodida sem gosto pela vida. De manhã, de tarde, de frente, de lado, por trás, de tudo quanto é jeito e com tudo quanto é gente. De menino travestido de homem, de homem metido a menino.

Pegou e largou tudo quando é doença que os vermes transmitem na nota suja do dinheiro.

Por prazer se dava pela metade. Por bebida e riso falso se se dava por inteiro. Por amor? Nem fodendo?

***

A vida sabe o que eu quero
E fica se fazendo de difícil.

FLORES DE ALVENARIA

De Sérgio Vaz
Global Editora
184 páginas
R$ 25 .