Paraty – Ouvir da boca de um delegado de polícia que a legalização das drogas é um caminho possível para pacificação nas favelas cariocas parece ficção. O mesmo vale para jornalistas atuantes em grandes redes da mídia tradicional no Brasil e no exterior. Não se trata de fantasia. As falas em favor da descriminalização do tráfico, em espaços e momentos distintos, configuram uma sintonia da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) 2016.
Determinados temas são muito fortes para não darem as caras. A saudação “primeiramente Fora, Temer!” virou bordão em Paraty, independentemente do tamanho do palco. A jovem poeta Laura Liuzzi foi ousada. Na Tenda dos Autores, o espaço mais nobre do festival, leu um poema do vice em exercício e constatou em público: “É muito ruim”.
São sinais de que falar sobre política, violência, desigualdade racial, social e de gênero é mais urgente do que a curadoria gostaria de supor. A expectativa é que a vencedora do prêmio Nobel no ano passado, a jornalista e escritora nascida na Ucrânia Svetlana Aleksiévitch, reforce hoje o cunho político desta Flip.
Foi em uma das tantas casinhas do centro histórico de Paraty, com a parede de rochas aparentes, que o debate sobre violência ganhou eco explícito. Distante da programação oficial, o tema encontrou abrigo na Liga Brasileira de Editoras, a Libre, que reúne editoras independentes no mercado brasileiro. Personalidades como o teólogo Leonardo Boff e políticos como a senadora Fátima Bezerra e o deputado Marcelo Freixo se juntaram a acadêmicos e escritores para falar sobre a cultura do medo, na quinta-feira.
Com coragem, o delegado Orlando Zaccone abriu os debates com uma defesa contundente de que o modelo punitivo aplicado no Brasil é falido. É também um paradoxo. “Você não vai resolver o problema da homofobia prendendo o homofóbico. Isso se resolve com política”, afirma. A experiência nas delegacias do Rio de Janeiro ensina que o Estado chamou para si a função de punir. Faz isso com tanta violência quanto o crime. “O Estado brasileiro e a sociedade aprovam a execução de criminosos. Se Amarildo tivesse sido construído como traficante, como alguns tentaram, ninguém teria discutido o caso”, diz.
Autor dos livros Indignos da vida: a desconstrução do poder punitivo (2015) e Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas (2011), Zaccone é fervoroso na defesa de políticas públicas como combate a chagas sociais como o machismo, a homofobia e, principalmente, o narcotráfico. “A partir do momento em que legaliza, acaba a guerra. Tem alguém tomando conta de farmácia com fuzil? Viagra mata mais que a maconha.” Para ele, se as campanhas contra o consumo funcionaram com o tabaco, por que não com outras drogas?
A escritora mineira Cidinha da Silva foi a convidada para falar sobre violência racial. Para comprovar o quanto ela está inserida no contexto mais amplo do racismo, a autora recuperou casos recentes de crimes cometidos contra negros.
VIOLÊNCIA SIMBÓLICA
O escritor paulistano Ricardo Lísias, autor do romance Divórcio (2013), foi um dos participantes da programação da Casa Libre. Ele foi convidado a falar sobre a cultura do medo, em especial, sobre os textos da violência e a violência dos textos. “Se meus textos não forem violentos, eu falhei. Escrevo para machucar pessoas, instâncias sociais, instituições e obter determinados tipos de movimentações”, diz o autor, um crítico ferrenho da mídia tradicional. No romance Divórcio(2013), Lísias narra a própria separação, após descobrir o adultério da ex-mulher por meio do diário dela. Na época do lançamento, teve a ética questionada ao se apropriar de confissões alheias e torná-las públicas, ainda que romanceadas.
No último dia 12 de junho, Lísias foi absolvido de um processo que o acusava de falsificação de documentos. Desta vez, nada a ver com o polêmico divórcio. É uma história curiosa, que começou com uma vontade de entender os mecanismos da fofoca, despertou uma pesquisa literária de personagens de ficção, gerou conflito na justiça real e virou uma peça de teatro. O livro Inquérito policial família Tobias, em formato de documento jurídico, foi lançado em maio deste ano pela editora Lote 42.
Eis a gênese do projeto: em 2014, o autor começou a fazer experimentos para uma série de e-books sobre o Delegado Tobias. “É um personagem que inventei”, conta. Por acaso, o policial da ficção investigava o próprio escritor, o único sujeito que realmente existia na história. Faziam parte do livro digital documentos fictícios que, fora de contexto, foram denunciados ao Ministério Público (sete vezes e em diferentes estados brasileiros) como falsificações.
Lísias foi chamado a depor. Virou réu da trama que ele mesmo criou. Teve que arrumar advogado e participar de todo o ritual jurídico. No fim das contas, a justiça concluiu que tudo não passava de uma obra artística. Sim, simbolicamente violenta, repleta de ironias, mas ficcional. “Não é violência física, porque é literatura. Espero que tenha lugar de força de intervenção.”.