A edição brasileira de Todos os contos vem com um marcador de páginas que traz um recorte da capa, com os olhos da Clarice. No decorrer da leitura, fica a sensação de que ela estava ali o tempo inteiro nos olhando e avaliando com aquele olhar meio superior. O recurso reforça a impressão de que ela de alguma maneira saltava dali, daqueles textos. No prefácio, você ressalta essa capacidade de síntese e de transparência dos contos, como se eles de fato mostrassem a autora. Qual a força da reunião deste material para traduzir e revelar a persona de Clarice?
Especialmente, eu diria que o encanto desse livro é o fato de que aqui você tem tudo que ela produziu, tem desde o início da carreira, ela menininha, quase adolescente, começando, até a morte dela. Você tem várias Clarices em todos os momentos da vida dela. É muito raro – pelo que sei e até agora ninguém me contradisse – ela foi a primeira mulher a escrever durante toda a sua vida sobre essa vida de mulher e isso tinha sido uma revolução involuntária. Mas ela está nos olhando e olhando para vida do que imagino ser o leitor do Estado de Minas: pessoas da classe média, normais, com família, com filhos. Ela está olhando para nossa vida, não para o interior do Sergipe, ou Amazônia, nem de altas classes sociais, como o era o caso da literatura brasileira antes dela. Ela descreve nossos estados de alma, como se estivesse nos julgando, mas sem agressividade. Para mim, esse olhar é cheio de compaixão, de compreensão. Por isso, gosto desses contos juntos.
Você mencionou revolução involuntária. A figura da mulher, frequentemente personagem central do universo de Clarice, e as questões do feminino aquecem debates intensos no mundo contemporâneo, relativos à afirmação, reivindicações de equiparação de direitos e empoderamento. No seu ponto de vista, a obra da escritora agrega elementos a essa discussão?
Isso também é um encanto da grande arte em qualquer época. É uma coisa que vem com tempo, o debate do feminismo, uma palavra que pode suscitar reações negativas… Faço questão de falar que sou feminista, porque acredito na igualdade do homem e da mulher, uma coisa simples. Mas, para Clarice, as coisas mais simples são as mais complicadas. É interessante ver isso hoje, quando o feminismo tem todos os aspectos sociais e políticos que a gente pode discutir. Mas, na obra da Clarice, aparece esse olhar de compaixão para a vida das mulheres no Brasil. Hoje, tem muita gente igual a essas mulheres dela em qualquer lugar do mundo, mas ela dá uma dignidade a essas mulheres, em certa medida, inédita, porque isso até então era dado pelos homens.
Nesse sentido, a repercussão internacional do livro inclui comparações a grandes homens da história da literatura – Beckett, Kafka, Joyce, Borges, Pessoa. Você concorda com as menções e se fosse incluir mulheres nesse panteão, a quem recorreria?
Não só concordo, mas foi ideia minha. Faço questão de colocá-la ao lado de homens porque acho subversivo. Se você percebe a maneira como ela trata as personagens mulheres, tem que dizer que ela é o escritor brasileiro mais importante do século 20. Em português, a questão se particulariza, porque não existe o writer, existe o escritor e a escritora. Ela é frequentemente colocada à parte, por ser mulher, judia, mas como todas as pessoas que você compara incorriam também especificidades: Kafka era tcheco, judeu, que falava alemão... Acho que vale a pena dizer que um dos escritores mais importantes do século foi uma senhora no Rio de Janeiro. Me chamou atenção recentemente aquela corrente de Facebook que instigava as pessoas a listarem autoras mulheres favoritas. Penso que temos de fazer questão de não aceitar que a mulher esteja numa categoria à parte. Quando isso ocorre, ela é frequentemente inferiorizada.
Você contou em entrevistas quando lançou o Why this world (a biografia de Clarice) que aprendeu português e chegou à obra da escritora por acaso. Ao ter o primeiro contato com A hora da estrela, imaginou, ali aos 19 anos, que escreveria um best-seller que projetaria Clarice internacionalmente? Tinha essa ambição?
Não, não tinha nenhuma ideia. Comparo isso com aquela situação em que você está em um bar, em uma discoteca e vê uma pessoa atraente. Você gosta e é capaz de transar – posso falar transar em Minas Gerais?
Pode, aqui as pessoas fazem muito isso, inclusive...
Ótimo (risos). Então você é até capaz de transar com a pessoa e, às vezes, no dia seguinte, você acorda com aquele peso: “No que eu estava pensando?” A pessoa vai embora e você nunca mais lembra dela. E, às vezes, você tem um caso que poderia durar uma noite só e ela vira a pessoa da sua vida. Voltei para casa com ela, e acabei casado com ela. Quando você vai se apaixonar, não tem como prever, você não sabe até onde isso vai dar. Eu já me apaixonei pela pessoa errada várias vezes, como quase todo mundo, mas a paixão por Clarice deu certo, pelo amor que tenho a ela, acabei conseguindo abrir esse espaço e mostrá-la a pessoas que não a conheciam.
A Clarice já o intimidou?
Não, o que me intimidou não foi a pessoa dela, ela é muito natural, próxima, sem arrogância, sem pretensão. O que achei intimidador foi fazer jus a essa obra, a essa pessoa, porque a obra é extremamente rica, de uma riqueza filosófica, emocional, artística. Pense comigo: depois de tantos anos, deveria estar farto dela, mas eu só faço mais e mais. Mas é difícil estar à altura dessa pessoa, porque é muito exigente intelectualmente também. E eu pensava: “Como vou falar sobre e divulgar essa pessoa para um publico internacional, para quem nunca ouviu falar dela? É um desafio. Mais que intimidado, me sinto desafiado.
Você já traduziu Clarice para o inglês, em A hora da estrela. Quais são as principais dificuldades desse trabalho e quais os trunfos que, na sua opinião, fizeram da tradução de Todos os contos um trabalho premiado com o Pen Translation Prize?
As dificuldade são faceis de explicar. Você tem que respeitar a maneira de Clarice escrever, porque a verdade é que ela escreve português fora da norma culta, ou português “errado”. Vi isso porque, quando estou mexendo nas traduções, fico no Goggle Chat perguntando a amigos que moram no Brasil: “Fulano, o que significa isso?” E os brasileiros ficam perplexos. E estou falando de quem conhece a obra dela. Então, se você respeitar, você pode traduzir com bastante justiça. O que não pode é mexer com o ritmo dela, perderia o encanto da escritura. Já é o sétimo livro em que me envolvo com a obra dela. Nos casos de lançamentos internacionais, normalmente, é importante que as traduções ocorram diretamente da língua portuguesa. Pode ser que na Turquia ou na Coreia do Sul, a tradução tenha sido feita com base no material em inglês, mas, normalmente, partimos do trabalho em português.
Como andam as negociações para tornar o Why this world um filme? Você já se cansou de desmentir boatos – como o que indicava Meryl Streep como protagonista, no papel de Clarice. Tem alguma novidade?
Tenho, mas, contratualmente, não posso falar disso, está acontecendo.
Você vem à Flip também para lançar o Autoimperialismo. Participou da Festa Literária em 2010 e volta seis anos depois, em meio a um turbilhão no nosso cenário político. Qual a sua percepção desse momento que atravessamos e se é tão difícil pra nós brasileiros entendermos o Brasil. Por que você foi “se meter” a isso?
(Risos) Porque eu me meto, não tenho jeito. Tento ficar só na cultura, mas a arte é muito ligada à politica e à sociedade. Não posso ter uma opinião a respeito de um prédio sem levar em conta a sociedade. E o que eu queria contribuir, sempre caminhou no sentido de criar uma coisa propositiva positiva. Até quando o Brasil estava bombando e potencialmente conquistando o mundo. Agora, o que me chama atenção é que o Brasil sempre se acorda assustado com o tamanho da queda. Quero contribuir com uma visão mais ampla. O que acontece no Brasil? O Eduardo Cunha fala uma bobagem e todo mundo fica gritando no Twitter, mas, o que o Brasil está vivendo agora. é tudo menos novidade. O Brasil tem uma história de recorrência quanto a isso, ao longo de muitos anos. A cada geração, o Brasil tem um boom tremendo e alardeia-se que, desta vez, “vai bombar”, e depois que não bomba, acorda com uma ressaca tremenda: isso e regular. Conheci o Brasil quando estava bem no chão mesmo, uma depressão, uma coisa horrível. E, em pouco tempo, ficou uma coisa maravilhosa, promissora, o país do futuro. A pergunta que cabe nesse momento é: será que era uma coisa tão ruim? E, por outro lado, foi tão maravilhosa mesmo? Autoimperialismo é uma tentativa de investigar por que o Brasil se odeia. Vejo muito ódio, todo mundo gritando nas ruas. Chegam a ser patéticas as pessoas se xingando no Facebook. Cabe nos perguntarmos: por que as pessoas se decepcionam? Mas acho que uma pista está no fato de que o Brasil tem muito ódio de si e fica se destruindo de maneira muito literal. No caso da arquitetura, de acabar com cidades históricas, desprezar seu próprio povo, assassinar literalmente seu próprio povo, acabar com o meio ambiente, com a vida das pessoas. E o pior é que isso acontece internamente. Não quero parecer que estou dizendo “façam isso e aquilo porque o gringo falou”, mas é a tentativa de pensar um país que é imperialista consigo mesmo. Nós, nos Estados Unidos, invadimos outros países, e o Brasil invade o Brasil. Problematizo sem dar uma resposta, mas é sobre o olhar que acho que vale à pena..