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Primeira Graphic Novel de Julia Wertz faz relato autobiográfico e brinca com a arte de rir de si próprio

Em 'Entre umas e outras', quadrinista americana é espontânea e sincera ao usar humor para debochar dos defeitos

Pablo Pires Fernandes
Retratada com a típica autoironia - Foto: Reprodução
É desconcertante a ironia com que a quadrinista americana Julia Wertz fala sobre si mesma. A cada página de Entre umas e outras, graphic novel recém-lançada no Brasil pela Nemo, a protagonista-autora surpreende pela capacidade de se autodepreciar e, sobretudo, expor suas próprias falhas e trapalhadas ao se relacionar com a vida cotidiana. Mas é exatamente essa entrega absoluta e sincera, espontânea e banal que tornam esta obra particularmente especial.

Não é por acaso que Julia se tornou uma autora respeitada. O princípio de entrega e dedicação acabou conquistando leitores fieis. E ela foi notada. Naturalmente, surgiram convites para publicar em respeitadas revistas. Atualmente, publica mensalmente na New Yorker, uma série sobre aspectos singulares da história de Nova York. Na Harper’s, o foco são paisagens da metrópole americana.
Esse material das duas revistas (que pode ser visto on-line) será publicado em livro no próximo ano, acrescido de trabalhos inéditos.

A protagonista em crise entre a vida de jovem e a adulta - Foto: ReproduçãoEntre umas e outras, de 2015, é o primeiro título da artista que chega ao público brasileiro. Nos EUA, porém saíram em 2007 e 2009 dois volumes de The fart party (A festa do pum, em tradução livre). Em 2013, foi lançado The infinite wait and other stories (A espera infinita e outras histórias) continuação deste que está nas livrarias brasileiras. A demanda por seu trabalho ainda causa certo espanto, mas o reconhecimento deixa Julia contente. “Estou atolada pelos próximos anos, espero. É instigante”, diz, com humildade.

A narrativa autobiográfica de Entre umas e outras começa em São Francisco, cidade natal de Julia. Ela decide se mudar para Nova York para tentar a vida como quadrinista. Era verão de 2007 e tinha apenas um projeto em andamento: histórias de juventude, baladas e crises existenciais que resultou no The fart party. Deixou a família – a mãe, um irmão adicto e outro mais jovem – e partiu. O livro descreve um ano e meio de sua vida de recém-chegada à metrópole. Ela tinha, então, 24 anos.

A história de um(a) jovem buscando seu caminho na cidade grande confere universalidade à obra. No entanto, seu maior mérito é a capacidade de estabelecer identificação e cumplicidade com o leitor, mesmo que seja um público relativamente seleto. A forma direta de Julia se expressar e sua franqueza dão à história um poder de empatia singular.
É cativante.

Entre umas e outras (Drinking at the movies, no original – Bebendo nos cinemas, em tradução livre) é um romance de formação. O relato apresenta todos os elementos essenciais dos clássicos eruditos do gênero. No entanto, a forma narrativa – tanto verbal quanto gráfica – quebra convenções desse tipo de literatura.

Os diálogos e monólogos interiores são radicalmente simples, assim como o desenho e o uso dos recursos da linguagem dos quadrinhos. Tudo beira a banalidade. É quase tosco. O valor estético, porém, não reside no virtuosismo técnico, mas na potência expressiva. A abordagem de Julia passa pela escatologia, explicita indiossincrasias e não esconde a visão ranzinza e ácida, com toques misantrópicos, da personagem. A forma é suja, mas o todo é forte e consistente.

O relato de Julia toca em questões atemporais: a dificuldade de equilibrar a subjetividade diante das convenções sociais, a busca por sua própria identidade, o deslocamento de se ver em um mundo estranho e a relação com as diferenças. São temas talvez escondidos entre as bebedeiras da personagem, mas estão lá.

Atualmente, Julia olha com certo receio sobre seus primeiros trabalhos, incluindo Entre umas e outras. “Realmente gostaria que tivesse esperado mais alguns anos depois dos eventos retratados no livro para fazê-lo, mas estava fazendo os quadrinhos em tempo real, ao mesmo tempo que os eventos aconteciam”, conta.
Ela diz que poderia ter incluído “uma enormidade de situações”, mas que, or circunstâncias do momento, não entraram na história. Porém, reconhece que ter produzido enquanto vivia as situações conferiu um sentimento de imediaticidade interessante.
Uma de suas paisagens de Nova York - Foto: Reprodução

Sobre o fato de ter sua vida tão exposta em suas publicações, Julia diz não se importar. “Estou pouco me lixando sobre o que as pessoas pensam de mim”. No entanto, admite que tamanha sinceridade lançada a público lhe trouxe interpretações equivocadas a seus respeito, pois naturalmente, a Julia Wertz dos quadrinhos é apenas uma versão de Julia Wertz. “Não espero que as pessoas saibam que minha ‘persona’ na vida real seja diferente”, conta.

A artista assume que exagera certos traços de sua personalidade, sobretudo o mau humor e o sarcasmo. E, claro, opções têm consequências. “Não importa o quão eu seja amigável e legal, ocasionalmente, alguém vai me abordar esperando uma pessoa brava e antipática”, relata. Apesar da distância entre o real e a representação, a quadrinista é clara ao afirmar que aquela jovem de 24 anos, tímida e deslocada, com problemas para largar a adolescência, que bebe demasiadamente e observa o mundo com uma boa dose de ironia é realmente ela mesma.

Entre umas e outras
» De Julia Wertz
» Nemo, 208 págs., R$ 39,90

TRÊS PERGUNTAS PARA...
Julia Wertz, quadrinista

Qual a importância de escrever sobre si mesma em seu trabalho?

Faço histórias autobiográficas porque sou ruim em criar histórias, mas sou boa em fazer piadas e de lembrar de diálogos, o que, na maioria, são a essência de todos os meus quadrinhos. Não creio que o gênero autobiográfico seja realmente importante para mim como entrega, é apenas como eu gosto de fazer as coisas e não penso demais sobre o assunto. Não escrevo ou rescrevo, pesquiso ou sofro diante do texto porque é simplesmente o que aconteceu. Agora,quando faço quadrinhos sobre a história da cidade de Nova York é bem diferente. O processo de escrita é bem mais difícil, toma muito mais tempo e pode chegar a ser frustrante. Como os fatos já ocorreram, tenho que lidar com narrativa e diálogo e por não se tratar do que as pessoas realmente disseram, isso tudo requer muito mais atenção e trabalho de reescrita e edição.

Você se expõe com muita sinceridade em seus quadrinhos. Como é isso?

Me expor nos quadrinhos – minhas falhas e erros – é fácil por três razões. Primeiro, sempre há alguma coisa pior sobre a qual não estou falando a respeito. Então, aquele sentimento ruim ede embaraço não é tão ruim pra mim. Segundo, as pessoas se indentificam mais com a imperfeição do que com a perfeição. Ninguém gosta de um protagonista perfeito. As pessoas não querem se sentir sós em suas falhas e cagadas, e eu gosto de dar certo conforto por meio de exemplos. Terceiro, estou pouco me lixando sobre o que as pessoas pensam de mim, o que facilita bastante na hora de botar para fora as versões dos meus podres. Importo-me sobre o que meus amigos e minha família pensam, mas eles são uma porção tão pequena do meu público que não me preocupo.

Publicar e se expor lhe causaram consequências, profissionais e pessoais?

Nunca teve repercussão professional, além de ficar embarassada de explicar o velho título do quadrinho (The fart party – A festa do pum) para algumas pessoas da indústria. Entretanto,colocar para fora esse tanto de informação sobre você mesma acaba tendo repercussões que, ocasionalmente, pode ser bem incômodas. As pessoas se sentem à vontade de me mandar e-mails inapropriados ou ficar me fazendo perguntas íntimas, porque eles acham que me conhecem e não consideram que eu os desconheço completamente. Por isso, não gosto de discutir certas coisas com pessoas estranhas, mesmo que eu tenha colocado essas coisas num livro. E tambéma personagem no quadrinho é muito mais brava e rabugenta do que eu na vida real. Ainda sou eu, é só um aspecto exagerado da minha personalidade. Mas as pessoas tendem a achar que sou má ou rude, quando não sou. Pelo menos, não de propósito (risos). E também amadureci com a idade. Todo mundo em seus 20 anos é um babaca, e é nessa idade que, até agora, todos os meus livros se passam. Oops..