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Nova editora lança clássico dos quadrinhos

Criada em 1979, Sharaz-De, de Sergio Toppi, é obra-prima que revolucionou a linguagem

Pablo Pires Fernandes
Imagem de Esperei mil anos, um dos 10 contos árabes que compõem o álbum: página como obra autônoma - Foto: Reprodução
Não é fácil abrir uma editora nas circunstâncias atuais do país, sobretudo considerando a proposta de publicar obras gráficas de qualidade e custosas. Mas é exatamente isso que a Editora Figura fez. Idealizada pelo jornalista Rodrigo Rosa, conhecedor dos meandros das artes gráficas e dos quadrinhos, a recém-inaugurada editora estreou com uma obra-prima inédita no Brasil. Ótimo sinal e, só este fato, já merece aplausos.

A escolha inaugural foi Sharaz-De, do mestre italiano Sergio Toppi (1932-2012). Como o subtítulo diz, são “contos de as mil e uma noites”, narrados por Sharaz-De, mais conhecida no Brasil como Sherazade. As histórias são famosas e retumbam no imaginário mundial, além de responsáveis também por constituir nossa noção sobre o Oriente e uma certa imagem mística e quase fabular sobre o povo árabe.

Autor italiano prima pelo uso do contraste e da verticalização - Foto: ReproduçãoSergio Toppi é fiel ao universo, mas, por meio de recursos gráficos inovadores, reinterpreta os contos, conferindo nova dimensão às narrativas. A abordagem do ilustrador italiano descortina as pequenas fábulas sem incorrer em muitos dos clichês comumente usados nas versões da obra. Quando criou sua versão de Sharaz-De, em 1979, Toppi já tinha muitos anos de estrada.
Militava na ilustração e nos quadrinhos desde a década de 1950, ainda aluno de medicina, curso que abandonou.

RENOVAÇÃO
Além de muitos prêmios, o autor conquistou reconhecimento de público com colaborações para revistas de peso – Corrieire del Piccoli, Alter Alter – e ao publicar na França pela Editora Mosquito. Embora praticamente inédito no Brasil, a obra de Toppi tem importância significativa para a linguagem dos quadrinhos europeus. A adaptação feita em Sharaz-De renovou a estética visual ao conseguir uma boa síntese visual, sobrepondo imagens em um único quadro. Toppi é transgressor, sobretudo, ao conceber o elemento narrativo próprio dos quadrinhos – os quadros em sequência, dispostos em uma página – como um todo.

Sharaz-De, contos de as mil e uma noites (Volume 1) De Sergio Toppi - Editora Figura, 160 páginas, R$ 79,90 - Foto: Reprodução
O artista alcança o sublime ao verticalizar os elementos visuais e recompor a sequência narrativa da leitura tradicional para a composição da página inteira, usando dos elementos em claro e escuro de maneira própria e criando estruturas internas a partir deste contraste. Também é notável a disposição dos balões – outro elemento de linguagem específico dos quadrinhos –, que servem para conferir equilíbrio ao todo. Toppi faz uso de recursos gráficos pouco usados até então. A concepção de página como uma obra única e praticamente autônoma aproxima seu trabalho da pintura ou da tradição da gravura.

Seu traço elegante demonstra completo domínio da técnica ilustrativa e combina fidelidade realista e elementos fantásticos plenamente coerentes com a ideia dos contos narrados por Sharaz-De. Muitas vezes os traços remetem a Gustav Klimt ou Egon Schiele, ao criar padrões gráficos semelhantes a colagens, alternando linhas finas e o prato e branco contrastado. O artista consegue impor seu estilo singular ao texto árabe, criar misticismo, e envolver o leitor com tecidos e indumentárias, seres imaginários e reinos distantes, nos enreda como faz a narradora que, por isso, viveu 1001 noites a mais..