Jornalista transforma experiência com a maternidade atípica em livro que toca em questões profundas e que precisamos avançar

'Diário da mãe da Alice' fala sobre respeito ao outro e o direito a oportunidades de desenvolvimento que toda criança tem

por Valéria Mendes 24/10/2016 13:30
Jair Amaral/EM/D.A Press
Mariana Rosa, jornalista e escritora, brincando com a filha, Alice (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Alice tem 3 anos. Como toda menina dessa idade, se alegra na convivência com outras crianças. Além dos primos e primas, ela mora em um prédio onde já fez muitos amigos, amizade construída desde que ela era bem pequenininha. E essa turminha toda - parentes e vizinhança com idades que variam de 3 a 14 anos -, está crescendo junta, cada um vivenciando não apenas o próprio desenvolvimento, mas as descobertas e conquistas de seus pares. A sintonia é tão boa que precisa de pouca intermediação dos adultos para a brincadeira rolar solta. No ano que vem, Alice vai para escola se aventurar em um novo espaço de socialização. A família já começou a pesquisar algumas instituições com as quais se identifica e apesar de esse ser um momento de dúvidas e apreensão para qualquer família, a mãe e o pai da garotinha têm um motivo a mais para se inquietarem. “Tenho medo de não encontrar uma escola que vá oportunizar o que a minha filha precisa para se desenvolver”, afirma a mãe de Alice, a jornalista e escritora Mariana Rosa, 39 anos.

Dois dias antes do aniversário da mãe, em 17 de agosto de 2013, Alice veio ao mundo pesando 900 gramas e 31 centímetros: “do tamanho de uma régua”, diz Mariana. Ela nasceu com 29 semanas e passou os seus primeiros 145 dias de vidas em uma UTI neonatal. “Tive insuficiência placentária e Alice teve diversas complicações por ser um bebê prematuro extremo: hemorragia cerebral, hemorragia pulmonar, cinco infecções – duas delas generalizadas, e uma parada cardiorrespiratória que durou 26 minutos. Devido ao uso prolongado de oxigênio, ela também teve retinoplastia da prematuridade e precisou fazer cirurgia nos olhos com quatro meses”, narra a jornalista.

Mariana descreve esse capítulo de sua história como o momento de maior angústia da vida. “Não sabia o que podia ocorrer na hora seguinte. A condição de um bebê prematuro é de muita vulnerabilidade. No tempo que Alice ficou no hospital, podia visitá-la três vezes ao dia. Eu me despedia pela manhã com ela estável, mas não sabia qual seria sua condição à tarde. O tempo todo você se reprograma e se refaz, é muito desgastante do ponto de vista emocional. Para você ter uma ideia, não me lembro de quase nada que ocorreu fora da UTI, no tempo em que ela ficou internada. É como se eu tivesse tido um branco do que aconteceu no Brasil, no mundo, com meus amigos. Só me lembro do sofrimento imenso que era deixá-la no hospital e ir para casa. É desumano. Horrível”, diz.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), 41.095 bebês nascem diariamente antes de completar as 37 semanas de gestação. A prematuridade é a principal causa de mortalidade de meninos e meninas com menos de 5 anos e é também a responsável por problemas visuais, auditivos e de aprendizagem. Estudo recente publicado em setembro no The Journal of Pediatrics mostra que a incidência de depressão pós-parto em mães de bebês prematuros é o dobro da registrada em mulheres que tiveram bebês a termo (ou seja, depois de 37 semanas). A OMS estima que a depressão pós-parto acomete entre 10% a 15% das mulheres no mundo. Em mãe cuja prematuridade dos bebês foi extrema, o índice é de 20%.

Jair Amaral/EM/D.A Press
Na foto, Alice aos 8 meses (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Mariana não teve depressão. “Me mantive firme nos piores momentos.” Mas a culpa foi inevitável. “Pensava que era por incompetência minha.” E o aprendizado foi o caminho para a aceitação. “A gente escuta muito quando alguém pergunta para uma gestante ‘é menino ou menina?’, que o importante é que venha com saúde. Mas os bebês que vão para a UTI não vieram ao mundo com saúde. E hoje sei que o importante não é que venha com saúde porque aprendi que o contrário de doença não é a saúde, é o amor. Ver todas aquelas famílias juntas, no ambiente de uma UTI neonatal, com as crianças progredindo com seus altos e baixos, é transformador tanto para os bebês quanto para os pais”, afirma Mariana Rosa.

A vinda de Alice foi planejada, mas a gestação de Mariana era considerada de risco em razão do diagnóstico de trombofilia. “Tomei anticoagulante a gravidez toda”, conta. A jornalista tinha um “desejo imenso de amamentar”, mas a filha não tinha reflexo de sucção. “Meu leite não descia, estava sob forte pressão e consegui produzir leite por dois ou três meses, mas nunca em quantidade abundante que desse para todas as refeições dela”, recorda-se. Em razão desse nascimento ‘antes da hora’, Alice tem paralisia cerebral, não senta, não anda, não fala e não realiza nenhuma atividade com autonomia. Além disso, como comorbidade da paralisia cerebral, tem Síndrome de West, que simplificadamente pode ser explicada como uma epilepsia de difícil controle. “Ela já chegou a ter 70 convulsões por dia”, conta a escritora.

Divulgação
(foto: Divulgação)
VÍNCULO PELA VOZ
O vínculo entre mãe e filha não foi construído de forma típica, com o aconchego do colo, o olho no olho da amamentação, o cheirinho de neném por toda a casa depois do banho. “Vi e vivi situações de mães desistirem, de pais que não deram conta”, cita. Mas Mariana e Alice encontraram seu caminho e foi pela voz que as duas se conheceram, reconheceram e iniciaram a relação de amor. “A primeira vez que pude pegá-la no colo foi um pouco antes de ela completar um mês de vida. Só que dois ou três dias depois, ela teve a parada cardiorrespiratória e esperei mais um mês e meio pela segunda vez. Ela só veio para os meus braços de fato com quase quatro meses”, lembra.

Mariana abriu, então, “uma gretinha na incubadora” e contava para a filha o que tinha feito no quarto dela, cantava, contava histórias, falava sobre o tempo, os sonhos. “A gente acaba fazendo vínculos por outras vias. Sustentei esse vínculo na voz e na narrativa, posso dizer isso com toda a segurança. Até hoje minha voz promove um estágio de união entre nós, algo que foi construído lá atrás. Era a única coisa que existia que nos podia deixar próximas e talvez isso explique essa minha necessidade de escrever”, reflete.

Quando Alice tinha pouco mais de um ano, em abril de 2014, a jornalista iniciou o blog ‘Diário da Mãe da Alice’ que se transformou em um ponto de encontro – que em muitas situações rompeu a barreira do ambiente virtual – para que famílias com crianças atípicas pudessem se apoiar, trocar informações e se ajudar. “Embora chame diário, o objetivo não é expor a rotina da Alice, mas falar de alguma coisa pela qual ela está passando e que repercute em mim. É essa a perspectiva e, por isso, outras mães foram se identificando. São poucos os espaços de compartilhamentos – reais ou virtuais – da maternidade atípica”, diz.

E são essas descobertas de uma mãe e as histórias capazes de mobilizar o que temos de melhor em nós que vão se transformar em livro de mesmo título. Para isso, o projeto está em financiamento coletivo e precisa atingir a meta necessária: R$ 38.250. Se tudo der certo, o lançamento ocorrerá em dezembro. O desejo da jornalista é fomentar o debate sobre as questões relacionadas à maternidade atípica e à valorização da diversidade. “Não se trata de um livro autoral e individual, são histórias de muitas pessoas que eu conheci. Fiz uma seleção de textos publicados ao longo da existência do blog e pretendo escrever outros dois. No próximo vou falar sobre maternidade atípica em diversos estados do Brasil e o terceiro abordar a tecnologia assistiva (recursos e serviços que são desenvolvidos para a facilitar a vida de pessoas com deficiência)”, planeja. Segundo ela, muitos dos detalhes de equipamentos para pessoas com alguma necessidade especial são desenvolvidos por pais, mães e pessoas próximas justamente pela convivência e entendimento do que aquele indivíduo precisa.

Escola para Alice em 2017

Dos quatro meses que Mariana tinha direito de licença-maternidade, todos foram no hospital, mas ela conseguiu outros dois meses para se dedicar à filha. “Ela teve alta com cinco meses e fiquei com ela em casa só um mês. Voltar ao trabalho foi muito difícil, ela foi pra casa usando oxigênio e tomando várias medicações controladas. Mas era necessário, a estrutura de cuidado é cara”, explica. Só que a mãe não se sentia mais produtiva como antes do nascimento da filha. “Eu vivia em sobressalto. Voltei em fevereiro. Em novembro fui desligada. Mas dei graças a Deus, peguei meu acerto e fiquei por conta dela. Vivi tardiamente esse período de ficar juntinho”, observa.

E desde então, Mariana se dedicou exclusivamente à maternidade. Motivada, no entanto, pela condição de estabilidade da filha, a jornalista regressou ao mercado de trabalho há dois meses. Ainda mais que o plano para 2017 é com Alice na escola. “Eu, Mariana, continuo existindo e preciso ter os meus espaços de realização. Nesse tempo todo a gente se fundiu muito para que nós duas pudéssemos dar conta de superar tudo o que passamos. Agora, posso olhar para mim, para as coisas que gosto de fazer. Sou uma outra mulher e devo muito à minha filha. Antes de ela nascer, eu pensava que apresentaria o mundo para ela, mas foi ela que me mostrou o mundo sob a ótica das miudezas. O sucesso dela é na contramão do mundo. O mundo comemora em trilhões e ela comemora nas mínimas conquistas como o piscar de olhos. O livro não é a minha história e a história da Alice, é uma mensagem dentro de um contexto maior de um mundo que não só tolere, mas valorize as diferenças. Foi isso que a minha filha trouxe para mim”, diz.

Reprodução Facebook
Wesllem Farias Bacelar, educador físico e pai de Alice, é responsável, entre outras coisas, pela alimentação da filha e a importação do canabidiol (foto: Reprodução Facebook)
Para ela, é preciso falar sobre o que é conviver com uma pessoa com deficiência. “Não é triste. Ah, coitada, como são guerreiros, são heróis... Somos como todo mundo, todos nós temos nossas batalhas, temos nossas alegrias e o direito de sermos respeitados na condição da gente”, salienta. Antes de Alice, Mariana nunca havia convivido com alguém que tivesse qualquer tipo de necessidade especial: na família, na escola, no trabalho... “Minha família sempre prezou alta performance, a nota tinha que ser a melhor, passar no vestibular tinha que ser entre os primeiros. Só que a Alice foge absolutamente aos padrões e por causa da condição dela todos ao nosso redor aprendemos com ela”, afirma.

Com o ‘Diário da Mãe de Alice’, Mariana passou a ter contatos com outras famílias e entender outras experiências da parentalidade atípica. “Conheci um rapaz que mora no Rio e tem paralisia. Ele acabou de traduzir um documentário para o português e costuma dizer, quando questionado sobre o assunto, que não saberia dizer como seria a vida dele sem paralisia porque não seria a vida dele, seria outra vida”, conta.

FUTURO A comunicação entre mãe e filha nada se parece com o que predominantemente é retratado nas novelas, no cinema, na literatura e na publicidade. O entendimento se dá de maneira muito sutil, com muitos detalhes. “A Alice me obriga a me conectar com ela em uma outra dimensão. É num piscar de olhos, no balançar das pernas, em alguns sinais”, diz. A garotinha precisa de auxílio 24 horas. “À noite quando ela dorme, por exemplo, ela não muda de posição sozinha, ela faz um barulhinho para eu ir lá e virá-la”, cita.

Atualmente, as convulsões da garotinha estão controladas graças ao uso do canabidiol (composto medicinal da maconha). “A medicação não resolveu 100%. A solução se deu na combinação do CBD associado à dieta cetogênica (rica em gordura e sem carboidrato). Ela passa dias sem ter convulsões”, diz. Alice também tem visão subnormal e por isso não enxerga muito bem, mas o cognitivo é bem preservado. Hoje, Alice faz fisioterapia, fonoaudiologia, hidroterapia e musicoterapia. Mariana Rosa diz sentir medo quando pensa no desafio que é colocar a filha na escola. “Não estou segura, tenho medo de não achar um lugar, de não ter inclusão, de ela ficar encostada num canto. Mas é preciso transpor, experimentar e tentar. Sei que a inclusão é um assunto recente no mundo, faz parte o aprendizado e nós estamos dispostos a encarar esse desafio”, diz.

Wesllem Farias Bacelar, educador físico e pai de Alice, é o responsável por cuidar da alimentação da filha. É ele também quem cuida da importação do CBD. “Ele troca fralda. Dá banho. Ministra a medicação. Mede a febre. Canta música inventada para ninar. Dança abraçado. Cozinha. Lava a louça. Limpa o piso. Reveza os cuidados na madrugada. Acompanha as terapias. Fala o histórico de internação hospitalar de cor. Quer aprender sobre órteses, sobre posicionamento, sobre tecnologia assistiva”, relata Mariana Rosa em seu blog. Segundo ela, o companheiro já fez algumas adaptações nos carrinhos que Alice usa para que a menina tenha uma postura melhor. “Professor dedicado por profissão, na paternidade cede a vez à própria filha e assume a condição de aprendiz”, resume a esposa.

Em relação às expectativas sobre futuro da filha, Alice ensinou uma lição importante a Mariana e Wesllem, algo que muitas vezes impede que as famílias se atenham ao que de fato é importante: o presente, a infância em si – seja ela de uma criança típica ou atípica. “Não temos expectativas não é porque não acreditamos nela. Acreditamos demais no potencial da Alice. Só que as expectativas são limitadoras. O que temos é muita esperança de que ela possa se desenvolver lindamente dentro de suas capacidades. As expectativas que temos não são em relação à nossa filha, mas em relação ao Estado, à sociedade, às empresas. Expectativas e cobranças. Espero que governo, escolas, sociedade possam oportunizar tudo o que a minha filha precisa para ela se desenvolver”, afirma.

MAIS INFORMAÇÕES:
Blog ‘Diário da Mãe da Alice’
https://diariodamaedaalice.wordpress.com

Como ajudar no financiamento coletivo do livro: https://www.catarse.me/diariodamaedaalice