Conheça os benefícios e os malefícios do eletrochoque

O retorno da técnica, aperfeiçoada, aconteceu nos anos 2000, mas ainda não está totalmente claro por que a convulsão induzida produz benefícios relatados por pacientes

por Paloma Oliveto 21/10/2016 13:00
Minervino Junior / CB / D.A Press
"Depois do tratamento, você observa que houve modificações nas conexões entre os neurônios, alterações em áreas cerebrais. A ECT parece organizar os circuitos neurais" (foto: Minervino Junior / CB / D.A Press)
Como muitas outras descobertas da ciência, a associação entre convulsão e abrandamento dos sintomas psiquiátricos aconteceu por acaso. Considerado um dos fundadores da neurologia, o Nobel de medicina e fisiologia Julius Wagner von Jauregg percebeu, no início do século 20, que pacientes de transtornos mentais com infecções graves, que levavam a uma febre alta convulsiva, apresentavam melhora significativa. Testes conduzidos por ele em pessoas com neurossífilis avançada — doença incurável e progressiva, que leva a depressão, paranoia e comportamento violento — foram bem-sucedidos e abriram caminho para outras experiências.

No início, substâncias como cânfora e insulina foram usadas para induzir a convulsão em pacientes psiquiátricos. Até que, em abril de 1938, o neurologista italiano Ugo Cerletti conduziu a primeira sessão pública de eletrochoque em um laboratório da Clínica de Doenças Nervosas e Mentais da Universidade Régia de Roma. De acordo com Alessandro Aruta, pesquisador do Museu de História da Medicina da Universidade de Roma, o paciente era um jovem esquizofrênico, levado pela polícia ao hospital semanas antes, depois de ser encontrado vagando pelas ruas da capital. Sem exibir sinais de emoções e incapaz de se comunicar, ele foi deitado em uma cama e teve dois eletrodos encostados nas têmporas. “Depois do tratamento, o paciente começou a se interessar pelo que havia em sua volta; a mente clareou e pareceu estar em boa saúde”, descreve Aruta em um artigo publicado no jornal Medical History.

A indução da convulsão por meio da eletricidade continuou mostrando bons efeitos para minimizar sintomas psiquiátricos. Contudo, à custa de enorme sofrimento e desrespeito aos direitos humanos. Por décadas, o eletrochoque foi aplicado em alta voltagem, contra a vontade do paciente, que, diferentemente de hoje, não era anestesiado nem recebia relaxante muscular. Dessa forma, além de estar acordado durante o procedimento, o corpo inteiro convulsionava, provocando dores e gerando as pavorosas cenas do doente se debatendo, enquanto amarrado ou segurado por vários enfermeiros. Sem ninguém para regular sua aplicação, a técnica se banalizou, passando a ser usada para indicações controversas, como em usuários de drogas — algo proibido atualmente —, ou para punir/acalmar internos de clínicas e manicômios.

A partir de meados da década de 1970, denúncias e críticas sobre o eletrochoque se intensificaram. Aos poucos, vários países começaram a bani-lo. No Brasil, pouco a pouco foi desaparecendo dos hospitais públicos — em Brasília, a última sessão no Hospital de Base ocorreu em 1991. Contudo, com o aperfeiçoamento da técnica, o rigor das diretrizes de associações médicas nacionais e internacionais e as evidências científicas da melhora dos pacientes, a ECT começou a voltar nos anos 2000, sendo oferecida, hoje, em alguns hospitais universitários em São Paulo, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro e em Pernambuco, entre outros. No Hospital Universitário de Brasília (HUB), não há o serviço.

O psiquiatra e pesquisador Moacyr Alexandro Rosa, vice-presidente da Associação Brasileira de Estimulação Cerebral (Abecer), explica que os mecanismos de ação da eletroconvulsoterapia ainda estão sendo pesquisados. “Os efeitos são semelhantes aos dos fármacos, ela reduz receptores, libera hormônios e altera o ritmo cerebral. Mas faz isso de forma mais rápida. A depressão pode ser uma doença mortal. Quando você tem um paciente com risco de suicídio, não pode esperar semanas até que o remédio faça efeito”, defende. “Depois do tratamento, você observa que houve modificações nas conexões entre os neurônios, alterações em áreas cerebrais. A ECT parece organizar os circuitos neurais”, complementa a psiquiatra Raquel Carvalho Mergulhão, que atua com a técnica.



Vontade de viver
Se, no passado, a ECT causava medo nos pacientes, hoje eles parecem bastante à vontade com a técnica. Depois de um tratamento de 11 sessões, o engenheiro civil Eduardo (nome fictício a pedido do entrevistado), 38 anos, diz que o tratamento devolveu a ele a vontade de viver. Desde 2014, ele vinha travando uma batalha contra uma depressão severa, desencadeada após um episódio de síndrome de pânico, que o afastou do trabalho, da vida social e da própria casa. “Eu estava numa apatia total, não conseguia comer, não conseguia dormir nem com medicamento. Comecei a ter ideias suicidas”, conta. Eduardo voltou a morar com os pais. “Nem os antidepressivos estavam fazendo efeito. Trocava de remédio e nada. Também fiz terapia e não vi melhora”, recorda.

Diante desse quadro, um psiquiatra o encaminhou à ECT. Desconfiado, o engenheiro não acreditou que a técnica poderia ajudá-lo, mas foi incentivado pela família. “O apoio dos meus pais foi fundamental. Eles ficavam o tempo todo ao meu lado, sempre me acompanhavam e conversavam com os médicos.” De acordo com Eduardo, as sessões não traziam nenhum tipo de desconforto, mas, nos dias que se seguiam, ele costumava sofrer com um efeito comum e bastante incômodo da técnica: o esquecimento (veja infografia). Eduardo relata que a melhora foi gradativa. Seis meses depois do tratamento, ele voltou a morar sozinho. “Hoje não tenho mais nada. Trabalho bem, tenho muitas amizades, participo de muitas coisas, gosto de sair”, enumera. “Quero viver bem para compensar esse período em que fiquei deprimido”, diz.

Segundo o médico João Armando de Castro Santos, pós-graduado em saúde pública e membro da Sociedade Internacional de Eletroconvulsoterapia e Neuromodulação, uma das estratégias de humanização do tratamento com ECT é incentivar a presença dos familiares; inclusive, dentro da sala onde o procedimento é feito. “Para o paciente, é muito importante, porque a primeira pessoa que ele vê antes da anestesia é um familiar, e a primeira pessoa que vê quando acorda é um familiar. A pessoa já está com medo, vai fazer um procedimento cheio de estigma... É pior fazer sozinho, cercado só de desconhecidos”, pondera. (leia depoimento).


Roberto tem 49 anos é a casado há 23 com Camila, 39. Os nomes são fictícios a pedido do entrevistado
“Os sintomas começaram há uns quatro, cinco anos. A gente não sabia o que era. Eu sentia nela uma sensação de vazio, impotência. Minha mulher achava que não tinha direito a nada, sentia medo, só queria ficar deitada. Aquilo foi aumentando. Procuramos psicoterapeuta e psiquiatra, mas o tratamento só ia perdendo o efeito. Aumentava aquela dor, aquela angústia, a vontade de chorar e deitar. Então, ela começou a se automutilar.

O médico aumentou a medicação, aí ela só ficava drogada e acamada o dia inteiro. O médico falou: ‘Não está dando certo, então vou ter de te colocar para dormir’. Eram remédios fortes, que a derrubavam. Chegou uma hora em que ela tomava 12 remédios por dia. E, mesmo assim, começou com ideias suicidas. Ela ouvia vozes, dizendo para que se matasse, que isso seria muito melhor para ela. Por duas vezes, foi parar no hospital porque chegou a tomar uma quantidade 12 vezes maior de um medicamento. No fundo, ela não queria se matar, era a fuga de uma dor imensa. É uma coisa que não tem explicação.

Por fim, o psiquiatra falou que, naquela situação, ele já tinha feito o que dava para ser feito. Então, ele disse que a única solução seria a ECT (eletroconvulsoterapia). Antes disso, ele disse para interná-la, mas não aceitei. Minha mulher não se opôs. Ela já não estava ligando para nada, aceitava qualquer coisa, não tinha condição de discutir. A dor é tão grande que você aceita. Quando não tem saída, está disposto a tudo.

Desde o primeiro dia, eu fiquei lá, segurando a mão dela. Ela disse, depois, que fez um bem muito grande, saber que eu estava ao lado para cuidar dela. A sensação de proteção é muito boa para o depressivo, ele sente que não é um fardo, que tem alguém se importando com ele. Ela ainda está em tratamento, já fez 20 sessões, está na fase final de manutenção. Ela não se preocupava mais com higiene, não ligava para escovar o dente, tomar banho. Mas, na quinta sessão, começou a se preocupar com a assepsia, com vaidade. São detalhezinhos miúdos, mas de grande significado. Ela passou a dizer que ia à manicure, que queria mudar a cor do cabelo. Ela achava que não estava sentindo melhora nenhuma, não percebia a melhora, mas ela voltou a sorrir e a ter vaidade.

Hoje, ela toma muito menos remédios. São três, e a tendência é ficar só com um. Parou com a automutilação, parou de ouvir vozes, voltou a fazer exercícios. Ela já está fazendo planos para nossa viagem de janeiro. São coisas triviais, mas que deixaram de ser quando ela adoeceu. Ela estava na última fronteira, não saía da cama. Agora, tem uma vida comum.”


Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)

 

Alguns psicólogos temem que se comece a ampliar as indicações da ECT, a ponto de ela a ser oferecida a pacientes considerados menos graves. Há esse risco?

Todo procedimento médico é passível de ser inapropriadamente indicado. Por isso, valorizamos a boa formação e a fiscalização por quem de direito. Há normas e diretrizes nacionais e internacionais que apontam para as boas práticas em relação à ECT. O que ocorre na atualidade é justamente o oposto. O tratamento adequado é negado a milhares de pacientes com sintomas intensos e incapacitantes, pessoas que levam uma vida totalmente disfuncional. O peso em termos de sofrimento pessoal, familiar e social são enormes. Particularmente, acreditamos que seja uma boa estratégia manter a ECT em serviços de referência, com profissionais habilitados e capacitados, que possam fazer a triagem e orientar o médico do paciente sobre a indicação.

 

Ao que podemos atribuir tantas polêmicas e controvérsias ainda existentes sobre a ECT?

Há um resquício de bandeiras ideológicas de pessoas que associam a ECT a tortura e que se recusam a reconhecer os benefícios, quando bem indicada e benfeita. Certamente, ao longo de 80 anos, a técnica foi utilizada de maneira questionável em alguns locais e situações. Destacaria o uso para dependência química e para transtornos de personalidade. Não se usa ECT nesses casos. Também foi utilizada como método punitivo, muito provavelmente, para tentar “ajustar” comportamentos disfuncionais em unidades de internação de grandes proporções. Vale lembrar que, por muitos anos, a técnica foi realizada sem anestesia e sem relaxante muscular. Em geral, o paciente não se recordava, mas visualmente é bem mais chocante, como uma convulsão avistada na comunidade, com intensas contrações musculares. Não se deve confundir ECT com tortura com eletricidade. Muitos, maliciosamente, tentam associar a ECT às torturas elétricas da ditadura militar, algo descabido e desonesto. A energia utilizada na cardioversão elétrica ou nas arritmias ventriculares (aplicação da eletricidade no peito) é maior que a da ECT, em joules. Ambas salvam vidas, mas somente a desfibrilação/cardioversão é vista como ato heroico e terapêutico. Os resultados descritos pela literatura médica têm sido otimistas? A ECT é utilizada desde 1938, e a convulsoterapia, desde 1934. Trata-se do primeiro tratamento realmente eficaz em psiquiatria. Acumulam-se mais de 80 anos de experiência e evidências científicas. As evidências de efetividade e eficácia são robustas. Atualmente, é realizada sob anestesia geral, em ambiente controlado e com aparelhos modernos. Esses aparelhos permitem regular a carga individualmente e minimizam desconfortos. Portanto, na atualidade, mantemos a eficácia, reduzindo efeitos adversos e desconfortos.