Além da microcefalia: estudo brasileiro mostra que infecção por zika causa mais defeitos cerebrais graves em bebês

Calcificações intracranianas e redução da massa cinzenta estão entre as complicações

por Correio Braziliense 29/08/2016 15:00
Radiological Society Of North America / Divulgação
Tomografia de criança cuja mãe foi infectada pelo zika durante a gestação (foto: Radiological Society Of North America / Divulgação)
Embora a primeira associação entre o vírus zika e o desenvolvimento fetal tenha sido a microcefalia, esse é apenas um dos aspectos de uma síndrome que ainda começa a ser compreendida pela ciência. Agora, pela primeira vez, um estudo brasileiro publicado na revista Radiology, da Associação Americana de Radiologia, compila os achados de imagens em bebês e fetos cuja mãe foi infectada pelo vírus e mostra outros impactos causados pelo micro-organismo.

“As imagens são essenciais para identificar a presença e a severidade de alterações estruturais induzidas pela infecção, especialmente no sistema nervoso central”, diz a principal autora do artigo, Fernanda Tovar Moll, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e vice-presidente do Instituto D’Or de Pesquisa e Educação. O zika parece ser mais perigoso quando transmitido da mãe para o feto no primeiro semestre da gestação, aumentando o risco de defeitos cerebrais severos no bebê, o que inclui a microcefalia. Nesse caso, a cabeça da criança é excepcionalmente pequena devido a uma interrupção no desenvolvimento do cérebro.

O vírus também foi associado a defeitos oftalmológicos, deficits de audição e problemas no crescimento. “O primeiro trimestre é quando a infecção parece ser mais arriscada. De um ponto de vista de imagem, as anomalias no cérebro são muito severas quando comparadas a outras infecções congênitas”, conta Deborah Levine, professora de radiologia da Faculdade Médica de Harvard, em Boston, nos Estados Unidos, e participante do estudo.

Apesar de o foco principal da mídia na cobertura sobre os efeitos tóxicos da doença ser a microcefalia, os pesquisadores observam que há uma variedade de anomalias cerebrais detectadas em fetos expostos ao vírus, como perda de volume de matéria cinzenta e branca, problemas no tronco cerebral, calcificações e uma condição chamada ventriculomegalia, na qual os ventrículos, ou espaços preenchidos por fluidos no cérebro, são alargados. Alguns bebês infectados por zika podem não ter microcefalia se os ventrículos ficarem excessivamente largos.

Retrospecto
Os pesquisadores fizeram um estudo retrospectivo de imagens e autópsias de pacientes infectados pelo zika do Instituto de Pesquisa de Campina Grande, na Paraíba, estado em que a doença se apresentou mais severamente. De junho de 2015 a maio de 2016, 438 gestantes e bebês estiveram no instituto, reportando eczemas e suspeita de anomalias no sistema nervoso. Desse grupo, os pesquisadores identificaram 17 fetos ou recém-nascidos de mulheres submetidas a exames de imagem ou que tiveram a infecção confirmada por meio de exames. Também entraram no estudo 28 fetos ou recém-nascidos com suspeita de infecção por zika e calcificações intracranianas.

Radiological Society Of North America / Divulgação
Ressonâncias em fetos ajudaram na busca pelas anomalias (foto: Radiological Society Of North America / Divulgação)
Os exames de imagem incluíram ressonância magnética fetal, tomografia computadorizada pós-natal do cérebro, ressonância pós-natal e, em alguns casos, ultrassom longitudinal. As anomalias cerebrais detectadas nos grupos com zika confirmada ou suspeita foram muito similares. Quase todos os bebês tinham ventriculomegalia. Embora a maioria dos fetos tivesse circunferência encefálica reduzida, em três que tinham crescimento anormal dos ventrículos, o tamanho do crânio era normal.

As imagens também mostraram que 94% dos fetos e das crianças com caso confirmado de infecção apresentavam anomalias no corpo caloso, que é um grande feixe de nervos que permite a comunicação entre os hemisférios esquerdo e direito do cérebro. Todos, exceto um, tinham anomalias migracionais, significando que os neurônios não viajaram para seu destino apropriado dentro do órgão.

As calcificações intracranianas estavam presentes em quase todos os recém-nascidos, mais comumente encontradas na junção das matérias cinzenta e branca. Todos os bebês exibiram volume de tecido reduzido. Além disso, 100% dos —pacientes tinham algum tipo de anomalia no desenvolvimento cortical — rico em neurônios, o córtex é a área do processamento neuronal mais sofisticado do corpo. “A severidade da má-formação e das alterações teciduais associadas e a localização das calcificações na junção da matéria cinzenta-branca foram as descobertas mais surpreendentes em nossa pesquisa”, disse Tovar-Moll.

Nova prática
De acordo com Levine, a ultrassonografia pode mostrar as anomalias associadas à infecção congênita por zika, mas, eventualmente, demora um tempo até que essas mudanças sejam óbvias. “Mais que um ultrassom ou uma ressonância na gravidez, pode ser necessário verificar o crescimento e o desenvolvimento das anomalias no cérebro durante a gestação”, defende.

O zika entra no organismo humano principalmente pela picada de um mosquito. Os sintomas incluem febre, erupções na pele, dores nas articulações, dor de cabeça e vermelhidão nos olhos. Contudo, muitas pessoas são assintomáticas. Embora o surto tenha se concentrado no Brasil, há casos em outros países. Recentemente, a Flórida registrou um episódio de transmissão local. Fernanda Tovar-Moll afirma que os pesquisadores continuam a investigar as alterações no sistema nervoso central induzidas pela infecção para entender melhor o espectro de alterações que verificaram.

“Mais que um ultrassom ou uma ressonância na gravidez, pode ser necessário verificar o crescimento e o desenvolvimento das anomalias no cérebro durante a gestação” - Deborah Levine, professora de radiologia da Faculdade Médica de Harvard (EUA) e participante da pesquisa

100%
Dos bebês e fetos analisados tinham o volume do tecido cerebral reduzido e algum ipo de anomalia no desenvolvimento do córtex

Proteínas decisivas
O vírus zika tem 10 proteínas. Segundo pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, duas são determinantes para o surgimento da microcefalia: a NS4A e a NS4B. Conforme artigo divulgado, neste mês, na revista Cell Stem Cell, a dupla tem ações específicas: desorientar o mecanismo de sinalização das células do cérebro do feto, fazendo com que elas fiquem deficientes, e mobilizar essas estruturas para acelerar a proliferação do vírus.

Segundo os autores, o trabalho foi o primeiro a analisar o vírus em nível molecular e investigar como ele provoca a microcefalia usando linhagens de células-tronco neurais de fetos humanos. Trabalhos anteriores usaram organoides, também chamados de minicérebros, construídos a partir de células-tronco neurais de origem adulta. A equipe infectou as estruturas com três linhagens do zika e analisou os efeitos da contaminação conforme a presença das 10 proteínas presentes no vírus. A NS4A e a NS4B tiveram impacto direto na complicação cerebral. Segundo o experimento, elas reduziram em 65% o crescimento das células-tronco neurais.

“Como, agora, conhecemos a rota molecular, demos um grande passo para descobrir quais são as melhores terapias contra a microcefalia induzida pelo zika. Dentro de alguns anos, esses tratamentos poderão ter como alvo as proteínas NS4A e NS4B” disse Jae Jung, um dos autores do estudo. De uma forma geral, as duas proteínas desregulam um mecanismo que é central para proteger o desenvolvimento das células do cérebro e regular a autofagia — processo de reciclagem, responsável por digerir estruturas celulares danificadas. “O zika ama a autofagia e precisa dela. Ele aumenta sua atividade nessa usina de reciclagem de forma que pode usar a energia e os nutrientes ali presentes para se replicar”, ilustra Jung.