Cada vez mais, crianças se aventuram no mundo digital pelos 15 minutos de fama

Conteúdos são os mais variados e também atraem os chamados 'youtubers mirins', meninos e meninas na faixa entre 6 e 11 anos

por Sandra Kiefer 14/08/2016 09:17

Lelis
(foto: Lelis)

Se, antes, a maioria das pessoas sonhava ter direito a 15 minutos de fama pelo menos uma vez na vida, seja desfilando na passarela, aparecendo na TV ou soltando a voz no karaokê, as crianças de hoje podem fazer sucesso com as próprias mãos. Com o filtro dos pais, postam seu conteúdo educativo no canal do YouTube, que, em tradução literal, significa “Você no tubo da TV”. Afinal, elas nascem sabendo manusear celulares, gravar vídeos e até se projetar na tela, sendo vistas por dezenas de amigos da família, centenas de colegas da escola ou milhares de fãs na internet.

Já está no ar a segunda geração dos youtubers mirins, como são chamadas as crianças na faixa entre 6 a 11 anos capazes de produzir os próprios vídeos caseiros, de todos os tipos e jeitos. Por pura diversão, podem ser vistos ensinando a fazer papinhas de bonecas, dando dicas de joguinhos ou elaborando roteiros de novelas com personagens. Aos poucos, alguns se destacam, como Júlia Silva, de 11 anos, que acaba de lançar livro contando sua história de sucesso. Começou a gravar em Minas com apenas 6 anos.

As novas estrelas surgem inspiradas nos primeiros youtubers, que, em cinco anos, fizeram milhões de seguidores ou até atingiram a marca de 1 bilhão de visualizações, caso do fenômeno mineiro Marco Túlio Matos Vieira, de 20, dono do canal Authentic Games. Ele, que foi um dos precursores em Minas, se prepara para lançar uma escola de games em BH.



Antigamente, meninas passavam horas entretidas brincando de cozinhar “de mentira” em panelas e cozinhas fabricadas em plástico ou, no máximo do realismo, ganhavam a chance de assar um bolinho no forno, em geral no aniversário das bonecas. Na era da internet, porém, elas e também eles levam às últimas consequências o ato de fazer um cupcake ou preparar uma papinha imaginária para os bebês. Com mais de 1 milhão de visualizações, bombou no YouTube o vídeo onde uma mãe ensina, passo a passo, como preparar uma falsa sopa de ervilhas para a Baby Alive, com ingredientes como corante verde comestível e farinha, capaz de ser, inclusive, engolida pela boneca.

Mais do que levar horas para assistir aos vídeos produzidos por elas mesmas, com ou sem a ajuda dos pais, as crianças já estão partindo para filmar as próprias brincadeiras. É o que fazem as amigas AJ Cadence 1687 e Celeste 011, de 11 e 10 anos, respectivamente, que se apresentam com esses codinomes nas redes sociais e moram em bairros próximos. Com o apoio de ambas as mães, elas combinam de gravar uma espécie de novela com os personagens do Littlest Petshop, com roteiro bolado por elas mesmas. “Sinceramente? Sinto orgulho demais da minha filha, porque sinto que ela é uma artista e que passa recados legais nos trabalhos dela”, afirma a terapeuta Eliane Duque, que atua ainda como consultora de imagem.

Ramon Lisboa/EM/D.A Press
Camila Seabra diz que busca desenvolver na filha, Ana Clara, uma relação de confiança (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)

Até concordar em entregar um iPad para Cadence, Eliane esperou a filha completar 10 anos. Não demorou muito para a menina manifestar a vontade de criar o próprio canal, que, em oito meses, já conquistou 2,9 mil seguidores. O combinado entre mãe e filha é que, apesar das súplicas das fãs, que imploram para saber quem é a dona da voz e das incríveis dicas de moda para o lobo do ártico, postadas por Cadence, é que ela não se identifique ainda. “Ela já me pediu para o rosto aparecer na internet, mas ainda não dá. Se ela tem talento para isso e se for mesmo da natureza dela, as coisas vão seguir de forma profissional e equilibrada. Converso bastante com ela e dedico meu tempo para acompanhar os vídeos, mesmo quando estou cansada”, diz a mãe, acusando alguns pais de usar o computador e o iPad como babás eletrônicas.
Edésio ferreira/em/D.A Press
Gabi Cadense, de 10 anos, tem um canal há oito meses e já conquistou 2,9 mil seguidores (foto: Edésio ferreira/em/D.A Press)


CONFIANÇA
Da mesma forma, a analista de mídias sociais Camila Seabra, de 35, sente-se incomodada com a ideia de proibir a filha de tocar o canal Celeste para Amigos, iniciado há três meses no YouTube. Ela começou a gravar os vídeos inspirada na colega Cadence, também protegida por avatar. “Em função da minha profissão e por entender as ferramentas do meio digital, não me sinto à vontade de bloquear o acesso dela a determinados sites. Sei que não vai adiantar. Desde cedo, busco desenvolver uma relação de confiança nela, que demonstra maturidade nas suas atitudes. Para você ter uma ideia, ela mesma deixou o Facebook ao saber que era proibido para menores de 14 anos”, conta Camila, que chegou a levar um puxão de orelha da filha para se desgrudar um pouco do celular. “Meu pesar é não ajudá-la mais com recursos tecnológicos, por falta de tempo”, completa.

“Minha filha nem sabe entrar no YouTube”, garante a arquiteta Denise Aquino dos Santos, de 39, que mora no Espírito Santo e participa do site especializado em mães Padecendo. Ela mesma grava, edita e posta os vídeos de Marina, de apenas 6, que insistiu em participar da brincadeira, assim como todas as colegas da escola. “É a febre do momento. Na minha época, as meninas queriam ser paquitas e imitavam o programa da Xuxa”, compara a mãe, que não cria grandes expectativas em relação aos filmes protagonizados pela menina, que não contam com recursos técnicos.

Até agora, o mais curtido foi a gravação de trechos da festa do pijama, com cerca de 300 visualizações das amigas, convidadas para o aniversário de 6 anos. “Deve ter quase um mês que a gente não publica novidades. Prefiro que ela encare como uma brincadeira, sem muita cobrança”, diz Denise, que cuida também de uma bebê de 9 meses.

 

Cuidado com a superexposição

Cautela em relação aos temas e conteúdos, além de suporte da família, são fundamentais na hora de decidir entrar nessa onda. Conta ponto o estímulo à criatividade e ao bom senso


Além de respeitar a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de limitar o acesso às telas no máximo a duas horas diárias, especialistas em educação orientam a ter cautela na exposição da imagem das crianças na rede mundial de computadores. Um dos donos da Buddy’s, escola de informática para crianças de Belo Horizonte, Marlon Wanderllich, de 24 anos, alerta que os pais são responsáveis legalmente pelas postagens dos filhos e que o melhor a fazer é ensiná-los a dominar melhor as regras da internet e dos computadores. “Se o aluno for focado de maneira correta, poderá aprender a ser menos passivo e mais ativo na rede, além de conseguir se comunicar pela linguagem de vídeos, que é mais difícil do que se imagina. A criança pode ser estimulada na criatividade, na proatividade”, defende.

“É possível ter vídeos pessoais no YouTube, até eu tenho, mas desde que se tenha o cuidado de não expor muito as crianças”, alerta a psicopedagoga e psicanalista Cristina da Silveira. Ela lembra que a infância é a época de estruturar a personalidade e o caráter e que uma brincadeira inocente, na realidade, costuma significar mais do que isso para os personagens envolvidos. “Veja o caso de uma criança de 7 anos que falou com a mãe que havia visto um vulto na escada e que estava com medo. O que a mãe fez? Obrigou a filha a descer a escadaria do prédio, filmando as reações da menina para colocar na internet e todo mundo ver”, espanta-se a terapeuta. Segundo ela, o direito das crianças a terem medo deve ser respeitado.

INFLUÊNCIA Ao perceber que o filho Lucas, de 6, começou a falar palavreado impróprio, a fonoaudióloga Renata Abijaodi buscou entender a origem do problema. Descobriu que, em vez de sofrer influência de colegas, o menino estava, na realidade, vendo vídeos em excesso no YouTube, nem sempre de apresentadores que tomam cuidado em evitar palavrões. Irritada, a mãe tomou uma medida radical: vetou alguns dos canais do filho e passou a acompanhar mais de perto a permanência dele na internet. “Ele pedia para entrar quase todos os dias no YouTube e a questão foi se ampliando. Passou a ficar com medo de escuro depois de assistir a filmes de fantasmas e zumbis”, afirma a mãe, que procura incentivar narrações mais lentas e infantis, próprias para a faixa etária.


• Um milhão de seguidores

“É uma sensação boa. Muitas vezes, os adultos não querem dar a palavra para as crianças, mas a gente tem opinião”, diz Júlia Silva, hoje com 11 anos e uma das primeiras brasileiras a lançar vídeos de bonecas no YouTube. Com apenas 6 anos, ela morou com a família na França, devido à transferência do pai para a sede de uma multinacional de helicópteros onde trabalhava. Sem opções para assistir na TV francesa, a menina seguiu a sugestão de trocar a telinha pelos vídeos sobre a boneca Monster High, divulgados no YouTube, que, na época, era febre entre as garotas dos Estados Unidos. Em cinco anos, Júlia atingiu 1 milhão de seguidores e acaba de lançar livro contando a própria história de sucesso.

Conhecida como youtuber mineira, na realidade, Júlia Silva é de São Paulo, onde voltou a viver depois da última transferência do pai, Dreyfus Silva, engenheiro aeronáutico. Durante quatro anos, a família morou em Itajubá, no Sul de Minas. Confiante, a garota dá dicas sobre a gravação dos vídeos, que, no seu caso, conta com o patrocínio da fabricante de bonecas Mattel. “Primeiro, você tem de ter calma, que uma hora a fama vai acontecer. É só acreditar”, afirma, lembrando ainda que é preciso gostar do que se está fazendo e tentar não imitar outras fórmulas. “É preciso ser autêntica”, completa.

ESTUDIOSA

 

Para os filmes da Monster High há uma edição especial feita sob encomenda da fabricante de bonecas, mas a grande maioria é improvisada no celular da mãe de Júlia, a funcionária pública Paula Queiroz. Ela é responsável por editar e filtrar o conteúdo produzido pela garota, que costuma contar com a participação pessoal de Dreyfus nos vídeos. “A Paula tem vergonha de interagir e venho descobrindo esse lado que não sabia ter”, explica o pai, em entrevista por telefone. Na série Desafios, a dupla pode ser vista provando chicletes com sabor de pimenta, explosivo e outras misturas. Quem suportar o gosto na boca por mais tempo, ganha. “A média de notas da Júlia na escola é nove e ela estuda inglês e francês. A prioridade é o estudo regular”, cobra o pai.

Aulas e palestras
Do alto da experiência de ser o Pai Authentic, Marco Aurélio Fernandes Vieira conta que, no início, teve de abrir a conta e assinar em nome do filho, Marco Túlio Vieira Matos, em 2011, quando ele tinha apenas 13 anos. Atualmente, aos 20, Marco Túlio acumula 6 milhões de seguidores no canal Authenticgames. “Hoje, vejo meninos de 5, 7 anos lançando canal, o que era proibido. Acredito que o ideal é conseguir segurar até os 10 anos, quando eles têm mais maturidade”, afirma Marco Aurélio, lembrando que o garoto volta a BH em setembro para inaugurar a franquia de uma escola de informática, onde dará a aula inaugural e palestras esporádicas. Marco Túlio lançou em fevereiro o livro Authenticgames, que se tornou o mais lido dos últimos tempos na categoria infantojuvenil, com 150 mil cópias vendidas.

Dicas dos pais de youtubers

  • Se a criança é um pouco tímida, as gravações podem ajudá-la a se soltar.
  • Evitar permitir a criança de gravar vídeo com uniforme ou fazendo tour pela própria casa, mostrando detalhes que permitam a identificação do endereço.
  • Deixar a criança ditar o ritmo da produção dos vídeos, desde que não seja excessivo. Aos pais, não cabe ficar estimulando o youtuber a gravar ou dar continuidade no canal, caso tenha enjoado do hobby.
  • A gravação dos vídeos não deve interferir no horário de estudo. Em geral, sábados ou domingos são usados para produzir os filmes no iPad ou celular.
  • Uma dica é proteger a identidade da criança por meio de personagens ou de um avatar, que terá nome diferente na internet e só será revelado após acordo com os pais.
  • Uma criança jamais deve se responsabilizar sozinha pelo conteúdo. Antes de colocar no ar, o vídeo deve passar pela supervisão de um adulto moderador, que deve checar se as roupas e o vocabulário estão adequados.
  • Sempre que possível, é melhor se preocupar em passar uma mensagem construtiva aos fãs do canal, que será assistido prioritariamente por crianças da mesma faixa etária.
  • Os valores ganhos com a monetização dos vídeos pelo YouTube devem ser revertidos em prol de um investimento financeiro aberto em nome da criança.
  • Os pais devem ter disposição para ajudar os filhos a administrar conflitos gerados pelo canal, tais como críticas negativas aos vídeos, que fazem parte do show e da vida.
  • Outro ensinamento à criança é enfrentar a pressão dos seguidores, quando o youtuber demora a publicar. É preciso orientar para oferecer o melhor de si nas tarefas, mas a ter bom senso nas escolhas e a ser organizado com o tempo.