Medicamento biológico aprovado no Brasil é nova arma contra colesterol alto

Droga funciona em pacientes que não respondem ao tratamento padrão, como os com risco cardíaco elevado

por Paloma Oliveto 09/08/2016 15:00
Até a década de 1980, pessoas com níveis elevados de colesterol tinham pouco a fazer a respeito, senão tentar reduzir o consumo de alimentos associados ao acúmulo dessa substância na corrente sanguínea. Isso era muito pouco, considerando um tipo de gordura que, em níveis elevados, pode provocar eventos como infarto e acidente vascular cerebral (AVC). Desde os anos 1950, laboratórios tentavam, sem sucesso, chegar a uma fórmula para limpar o LDL, o colesterol “ruim”, e evitar que ele prejudicasse o tecido que recobre o coração. Em 1987, as estatinas entraram no mercado, revolucionando o tratamento desse mal silencioso cujo primeiro sintoma já costuma ser o aparecimento de uma doença cardiovascular e tem o dia de hoje como data nacional de prevenção e combate.

As estatinas salvaram milhares de vidas — estimativas publicadas na revista The Lancet apontam uma redução de 30% na mortalidade por eventos cardiovasculares. Mas, para algumas pessoas, não funcionam. Seja por terem mutações genéticas, seja por não tolerarem os efeitos colaterais (o principal é a dor muscular), ou por fazerem parte de uma população de risco cardíaco elevado. Para esse público, a indústria investe em uma nova classe de drogas, os inibidores da PCSK9, uma proteína com papel fundamental na destruição do colesterol “ruim” e que só foi identificada há pouco tempo graças a estudos do genoma humano. Um desses medicamentos acabou de ser aprovado no Brasil e deve começar a ser vendido ainda neste mês.

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A descoberta da PCSK9 por um grupo de bioquímicos canadenses em 2003 foi celebrada pela revista Nature, para quem, “de todas as intrigantes sequências de DNA reveladas (...) seja um candidato mais promissor a ter um impacto rápido e de larga escala na saúde”. O mais curioso nessa história é que ela tem origem em uma paciente na faixa dos 40 anos que se tornou modelo de estudo na Universidade do Texas em Southwestern, nos EUA, porque sua taxa de LDL não ultrapassava 14mg/dl. A diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia é de que esse índice fique em até 100mg/dl nas pessoas em geral e em até 70mg/dl nas com alto risco, como obesas e adeptas do tabagismo.

Os cientistas reviraram o DNA da mulher até descobrirem a causa de um colesterol “ruim” tão baixo: ela carregava duas mutações no gene PCSK9 que faziam com que quase toda molécula de gordura circulante fosse capturada por receptores específicos e destruídas. Era a deixa pra que companhias farmacêuticas se lançassem numa corrida para tentar sintetizar medicamentos que imitassem esse efeito.

Atualmente, há duas drogas aprovadas pelo Food and Drugs Administration (FDA), o órgão de regulamentação de medicamentos dos EUA: o alirocumab, da Sanofi; e o evolocumabe, da Amgen. Esse último, com nome comercial de Repatha, é o primeiro a ser aprovado no Brasil pela Anvisa e deve estar disponível no mercado até o fim do mês. Dos 37 mil pacientes envolvidos nos testes clínicos, 764 são brasileiros — 19 deles, de Brasília.

“O Brasil tem uma das mais elevadas taxas de mortalidade por doença arterial coronariana e por acidente vascular cerebral do mundo. Existe um elo muito forte entre colesterol e doença cardiovascular”, diz o cardiologista Francisco Fonseca, professor e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Fonseca, que também é presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, diz que o controle da taxa de LDL leva à diminuição de riscos. “Se tivéssemos níveis ideais de colesterol no país, aproximadamente 50% dos casos de infarto seriam evitados e haveria uma redução de 18% de derrame cerebral.”.

Isso tem impacto na mortalidade, observa. De acordo com o médico, um estudo com 1.000 pacientes mostrou que o tratamento com estatinas evitou, em cinco anos, 142 ocorrências, como infarto e AVC, e 46 mortes.

Complicação genética
Enquanto as estatinas atendem a maior parte dos pacientes , para alguns grupos, elas têm pouco impacto. É o caso de pessoas que sofrem de uma doença genética e hereditária, a hipercolesterolemia familiar, que se caracteriza por taxas extremamente elevadas de LDL. Associado a mutações em quatro genes — incluindo o PCSK9 —, o mal se apresenta em duas formas. A heretozigótica (HFEe) é a mais branda, e os níveis de LDL dos pacientes variam de 310mg/dl a 580mg/dl. Na versão mais rara e severa, a homozigótica (HFHe), os doentes — crianças, inclusive — apresentam níveis que chegam a 1.160mg/dl. Não surpreende que o risco de infarto entre eles seja 13 vezes maior que o da população em geral, e 33 anos seja a idade média de óbito.

De acordo com o cardiologista Francisco Fonseca, a HFEe tem prevalência de uma em cada 200-500 pessoas e, no Brasil, a estimativa é que atinja 300 mil indivíduos. Contudo, ele acredita que o número possa ser maior, pois há desconhecimento sobre a doença, o que pode levar a um diagnóstico deficiente “É possível que até 800 mil pessoas no Brasil tenham HFEe”, afirma. Nos testes clínicos com pacientes de hipercolesterolemia familiar, o repatha associado à estatina alcançou uma redução adicional de 75% do colesterol LDL.

Dificuldade de adesão
Além das pessoas com problemas de colesterol alto por doença genética, o evolocumabe poderá beneficiar um grupo de pacientes que apresenta um somatório de condições adversas e, por isso, risco aumentado de eventos cardiovasculares. “Por exemplo, quem já sofreu um infarto e tem pressão alta, diabetes e colesterol alterado tem seis vezes mais chance de sofrer um novo evento”, diz o chefe do Serviço de Arterosclerose e Prevenção Cardiovascular do Instituto Nacional de Cardiologia (INC), Marcelo Assad. Ele lembra que as previsões para o Brasil são drásticas, com aumento de 250% no número de mortes por doenças cardiovasculares de 2000 a 2040 — como comparação, nos Estados Unidos, essa elevação será de 50%.

Esses pacientes com múltiplas condições, além do risco aumentado, têm um problema de adesão ao tratamento. “Eles já ingerem muitos remédios e podem parar de tomar as estatinas”, observa. Segundo Assad, uma pesquisa com 5.556 europeus que precisavam fazer uso desse tipo de medicamento mostrou que apenas 61% seguia corretamente a prescrição. “No Brasil, a adesão oscila de 10% a 15%”, diz. “Se o paciente é hipertenso, diabético e tem colesterol alto, não adianta tratá-lo com subdoses ou drogas menos potentes”, destaca. Uma vantagem do inibidor de PCSK9 é que ele é injetável (o próprio paciente aplica com um dispositivo que parece uma caneta e não deixa a agulha à mostra) e só requer uma aplicação a cada 15 dias.

Intolerantes

Outra indicação do medicamento é para o grupo de pacientes com intolerância às estatinas. “Essas pessoas sofrem de mialgia, que é dor muscular. Estudos com placebo mostraram que realmente é um efeito da estatina”, observa Maristela Sampaio, do Departamento Médico da Amgen. Os estudos da companhia farmacêutica indicaram que, nesse público, que não pode tomar estatina, o evolocumabe, sozinho, reduziu em mais de 50% o nível de LDL.

Com poucos efeitos colaterais — os mais frequentes foram faringite, cefaleia e infecção no trato superior —, o medicamento biológico, contudo, não será para todos os bolsos. O preço máximo ao consumidor ainda não foi definido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), que deve fazê-lo nos próximos dias. Nos Estados Unidos, a caixa com duas doses (suficiente para um mês) custa por volta de US$ 1 mil.  Nos países europeus, ele chegou custando metade disso. “Esse é um tratamento fabuloso, mas que não deve ser indicado para todas as pessoas que têm colesterol alto. As estatinas ainda são o tratamento padrão”, lembra o cardiologista Francisco Fonseca, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).